As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Décima Oitava Semana

Gabrielle Weber
4 min readFeb 6, 2021

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Cirurgias: para quê e para quem?

A primeira coisa que passa na cabeça da maioria das pessoas cis quando encontram, ou descobrem que alguma conhecida é, uma mulher trans ou travesti é sobre a sua configuração genital. Ainda mais nessa nova sociedade digital pós-covid, em que quase todas as nossas relações são mediadas pelo pseudoanonimato das redes, a pergunta mais comum versa sempre sobre termos feito ou não a famigerada cirurgia de redesignação genital. Mesmo ao vivo, quando alguns pudores ainda sobrevivem e, de vez em quando, ocorre à pessoa cis não perguntar, sua cara inquieta e os constantes olhares para a minha virilha denunciam a sua real curiosidade. E não, antes que me perguntem, não existe intimidade que lhe dê o direito de fazer tão invasivo questionamento. Afinal, não saímos perguntando a ninguém sobre suas hemorróidas, clamídias, gonorreias ou qualquer outra condição que possa afetar a região do corpo escondida por calcinhas ou cuecas. Guarde a sua curiosidade fetichista para si.

Certamente a essa altura da leitura, você deve estar se perguntando por que decidi começar o texto com tamanho desabafo, ou melhor, com tal nota de cautela. O motivo é que vou desabafar um pouco sobre cirurgias e modificações corporais e não quero que ninguém se sinta com o direito de me fazer, ou a qualquer outra pessoa trans, tais perguntas. Não é porque eu decidi abordar esse delicado tema que você pode me questionar.

Lembro que logo que comecei a pesquisar sobre o processo de transição de gênero fui assaltada por uma pletora de opções de modificações corporais, quase todas cirúrgicas. Das infinitas possibilidades de cirurgias de feminização facial, cujos nomes, se fosse listar, provavelmente tomariam toda uma página, à famigerada cirurgia de redesignação genital, passando pelo implante de silicone e envolvendo algumas menos conhecidas de modelagem corporal ou mudança da voz. Eu me senti perdida num supermercado, em que cada corredor era sobre um desses procedimentos, e tinha que ir às compras. Mas qual escolher? Tinha mesmo que me submeter a todos esses procedimentos para ser eventualmente lida como uma mulher? Ou melhor, ser aceita pela própria comunidade trans?

Eu não sei se era disforia, ou desejo, ou mesmo pressão dos pares, provavelmente, uma bela combinação linear, mas eu me senti compelida. Tinha que escolher as cirurgias para adequar meu corpo. Mas qual fazer?

Sempre me imaginei uma grande peituda. Talvez devesse começar pelo implante de silicone. Mas meus seios ainda iriam se desenvolver sob o efeito dos hormônios. Então, melhor esperar para maximizar a naturalidade do resultado. Passados mais de dois anos de hormonização, ainda não me decidi se faço ou não. Sim, meus nanopeitos cresceram. Sua presença é inegável em minha silhueta. Não, eles não cresceram o tanto que eu gostaria. Mas, sinto que ainda estão se desenvolvendo. Isso sem contar que acho as cicatrizes horrorosas. Não sei se saberia viver com elas. Certamente, passaria um bom tempo sem conseguir me ver nua. Continuamos no mesmo impasse. Por ora, melhor aguardar. Quem sabe a deusa dos peitos não opera um milagre e me salva da faca? Quem sabe eu não aprendo a gostar da minha imagem mesmo sem a abundância na comissão de frente?

Já que não podemos começar com os peitos, que tal arrumar a cara? Não bastassem as infinitas opções de procedimentos nessa área: mandíbula, queixo, nariz, boca, testa, pomo de adão, linha de cabelo, para citar apenas alguns dos mais comuns alvos, não sabia apontar o que realmente me incomodava. Acho minha testa muito grande, talvez abaixar a linha de cabelo resolvesse. Contudo, a maioria dos resultados que vi deixavam uma cicatriz muito feia e uma linha demasiadamente falsa. Artificialidade é o que eu mais sentia quanto mais resultados eu via. Todas as meninas acabavam com alguma pequena variação da mesma cara. Ficaria bonita? Ou mais importante, eu me reconheceria depois do resultado? Melhor esperar também.

Chegamos enfim na cirurgia de redesignação genital. Já a enxerguei como uma condição necessária para ser reconhecida como mulher. Gastei, e continuo a gastar, horas a fio tentando me decidir se é isso o que eu quero para mim. Não nego, tenho muita curiosidade em saber como é ter uma vagina. Cheguei até a sonhar com isso algumas vezes. Mas seria feliz? Conseguiria sentir prazer? Acharia-me bonita pelada na frente do espelho? Claro, tem suas vantagens. Não precisaria nunca mais aquendar. Poderia usar roupas justas e de banho sem ter que me preocupar com nada saindo do lugar ou com algum volume extra. Mas isso é motivo suficiente para fazer uma cirurgia de tamanho porte, com uma recuperação tão brutal e com grandes riscos de dar errado? Os resultados ruins são realmente aterradores.

Acho que deu para perceber que sou uma pessoa um tanto quanto indecisa. Talvez até um pouco medrosa. Mas o que adianta fazer todas essas cirurgias, se talvez essa sensação de inconformidade e de incompletude esteja dentro de mim? Cirurgias não são panacéias! Não vão resolver os nossos problemas de autoimagem! De fato, podem piorá-los. Precisamos antes de tudo nos aceitar e separar o que é pressão externa, afinal existe todo um padrão cisnormativo tentando moldar nossos corpos, do que é disforia e desejo. Eu realmente preciso passar por esse procedimento para poder me amar ou estou fazendo isso para ser aceita? São perguntas que precisamos nos fazer com mais frequência. Por enquanto, sigo tentando encontrar a beleza nesse corpo desviante que desafia e contesta toda a cisnormatividade. Eu posso ser bonita e plena ao meu próprio modo.

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Written by Gabrielle Weber

Somente uma mulher trans se aventurando pelas famigeradas terras do estrogênio, enquanto tenta fazer ciência e educar. Artes marcias, café, música e RPG.

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