As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Décima Quinta Semana

Gabrielle Weber
3 min readJan 16, 2021

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Desabafos Disfóricos

Sobrevivi para ouvir de uma pessoa trans, que julgava próxima e bem informada, afirmar veementemente que disforia de gênero não existe. De acordo com ela, não passa de uma invenção da cisgeneridade para nos controlar. Entendo a crítica quanto à origem do termo, afinal até recentemente éramos vistos como doentes e a disforia de gênero ,usada como um critério diagnóstico. Contudo, negar a materialidade dessa sensação tão comum a inúmeras narrativas trans não é apenas errado, é desonesto. Isso para não dizer cruel. Parece que ela se esquece, ou prefere ignorar, as vidas que são ceifadas diariamente em função desse sofrimento na forma de suicídio.

Acho seguro afirmar que nenhuma pessoa trans se sentia completamente confortável com o gênero que lhe foi atribuído ao nascimento. Afinal, por que passar por todo o estresse e riscos associados a uma transição de gênero se não for para se sentir melhor consigo mesma? Notadamente, inúmeros estudos corroboram uma significativa melhora da qualidade de vida de pessoas trans com a transição, em particular, com a hormonização adequada. Logo, invocando um argumento parecido com o teorema de Hahn-Banach, é possível afirmar que antes da transição a pessoa se sentia desconfortável com seu gênero. É exatamente esse desconforto que chamamos de disforia de gênero.

É importante enfatizar que esse desconforto não precisa ser horrendo, paralisante ou sufocante. Não é necessário odiar o seu corpo. Cada pessoa trans tem a sua relação individual com a disforia. De fato, muitas afirmam sequer sentí-la. E está tudo bem. Somos todes válides! Só não podemos sair por aí excluindo vivências, porque elas não são homeomórficas às nossas, ou melhor, porque não se alinham à nossa agenda política. Precisamos de uma comunidade inclusiva, afinal já basta toda a exclusão e preconceito que sofremos nas mãos do cistema.

Como uma pessoa que quase já tirou a própria vida devido à disforia de gênero, sinto-me profundamente atacada por esse tipo de afirmação completamente descabida. Minha relação com a disforia remonta à minha primeira infância, período no qual nem mesmo os conceitos de sexo e gênero estão devidamente estabelecidos na cabeça da criança. Lembro-me claramente do terror que senti com as primeiras e leves ereções, por volta de uns 5 ou 6 anos. Não sabia porquê, só sabia que aquilo era errado e que não deveria estar acontecendo. Desde então essa dissonância foi monotonicamente crescente até o início da terapia hormonal.

Minha vivência é apenas mais uma dentre milhões que relatam uma diminuição drástica da intensidade e frequência das crises disfóricas com o início da terapia hormonal. Pudera, os modelos mais aceitos na comunidade científica creditam essa dissonância a um desbalanço na química cerebral ocasionado pela presença predominante do hormônio sexual errado no sangue. Gosto muito da analogia de usar o combustível errado, por exemplo, abastecer um carro à gasolina com álcool, para explicar o que eu sentia. Antes da hormonização parecia que meu cérebro simplesmente não funcionava direito.

Hoje, depois de pouco mais de dois anos de terapia hormonal, posso afirmar que apesar de meu corpo ter mudado muito pouco, minha relação com ele está completamente diferente. Percebo que odiava como o sentia e como ele reagia aos estímulos externos. Não era um ódio ao falo, mas sim à forma com a qual ele se comportava. Se no começo da transição acreditava que necessitaria de infinitas cirurgias para adequar meu corpo, agora tenho a certeza de que muito disso era apenas uma distorção gerada pela própria disforia. Com ela em cheque, posso viver a minha vida cada vez mais plena.

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Gabrielle Weber
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Written by Gabrielle Weber

Somente uma mulher trans se aventurando pelas famigeradas terras do estrogênio, enquanto tenta fazer ciência e educar. Artes marcias, café, música e RPG.

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