As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Nona Semana

Gabrielle Weber
3 min readDec 5, 2020

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Corpo

De quem é esse que corpo que habito? Certamente, trata-se de uma pergunta que deveria ter me feito há muito tempo atrás. Contudo, se nem a liberdade para formulá-la tinha, quanto mais para fazer algo a respeito. Fato que diz pouco ao meu respeito, mas revela muito sobre a forma como fui criada.

Não sei qual foi a motivação para meus pais serem tão controladores com o meu corpo. Talvez haja alguma correlação não trivial com comportamentos explicitamente não cisheteronormativos que tenha apresentado ao longo da infância. Ou tenha sido alguma leitura errônea que fiz das inúmeras sugestões comportamentais que davam. Pouquíssimas coisas eram ditas explicitamente em casa. Quase tudo era deixado subentendido. Contudo, nesse momento pouco me importa o motivo, sei apenas que a sensação de que meu corpo não me pertencia era real. Não tinha nenhuma liberdade para fazer o que quisesse comigo. Minhas vontades eram todas podadas pelos desejos que meus pais incutiram em mim.

Começava pelas roupas que usava. Todas tinham que ser aprovadas pela minha mãe, que sempre me acompanhava às compras, mesmo depois de adolescenta e dona do meu próprio dinheiro. À época tinha certeza que não passava de uma insegurança minha, porém agora me parece claro que essa sensação não passava de uma consequência de ter todas as minhas opiniões devidamente rechaçadas. Nunca experimentei drogas, mesmo as inofensivas como a maconha tão comum em meios universitários, por medo de macular o tesouro que meu corpo era para meus pais. Tatuagens e piercings, apesar de povoarem meus sonhos de auto-imagem, eram-me proibidos, Minha mãe os achava horrendos. Também não vadiei, beijei, abracei, fiquei com quem queria e nem me explorei sexualmente. Tudo em nome de preservar algo que me era emprestado.

Não posso negar que a disforia, tão presente nas narrativas trans, teve seu papel não trivial nesse processo. Entretanto, parece-me também óbvio que se trata de um vetor linearmente independente. Ela e a dissociação decorrente, em não enxergar uma imagem condizente no espelho, contribuíram para esse processo de alienação corporal. Era um corpo que não apenas não me representava, sequer era meu. Deveria devolvê-lo intacto aos que me criaram.

Desvencilhar-me dessas múltiplas correntes que me impediam de ser eu mesma foi um processo deveras longo e sofrido. O domínio que meus pais exerciam sobre mim era tão forte, que mesmo o oceano que nos separa por mais de uma década foi incapaz de enfraquecê-lo. O fato de ter permanecido no apartamento em que fui criada certamente foi uma das ferramentas que contribuiu para continuar subjugada. Tanto que o processo de reconquista do meu corpo só pôde começar no momento em que fui para o meu próprio canto. Precisei até mudar de cidade para escapar dessas garras opressoras.

Contudo, não me engano em pensar que tal mudança tenha sido motivada por esse grito abafado por liberdade. Foi apenas uma fortuita conjuntura da vida. Mas que diferença ela fez em começar a me reconhecer como uma pessoa separada de meus pais. Com a ajuda da esposa passei a comprar roupas que vestiam meu corpo, em vez de apenas escondê-lo. Pode parecer bobo, mas usar calças justas que ressaltavam a minha bunda teve um papel muito importante em começar a reconhecer e a aceitar a minha feminilidade.

O ponto de inflexão nessa história ocorreu com a minha primeira tatuagem. Algo simples no ombro direito. Pequena o suficiente para que pudesse ser facilmente escondida pela manga de quase todas as minhas camisetas à época. Mas, por outro lado, profundo o suficiente para que finalmente saísse das vizinhanças do ponto de equilíbrio que me mantinha presa às vontades de meus pais. Foi um ato de rebeldia. Um grito por independência. O corpo é meu e eu faço com ele o que eu quero. Pouco me importa o que você acha!

Já, o ponto de não retorno nessa história, diferente do que muitas podem pensar, não foi o dia em que saí do armário, mas o dia em que timidamente assumi para mim mesma minha feminilidade colocando um piercing no umbigo. Algo que sonhava desde adolescenta. No momento, não me dei conta da profundidade do evento. Estava envergonhada demais para isso. Mas foi daí que cresceu irremediavelmente o desejo e a necessidade de transicionar. Não tinha mais volta. O corpo era enfim meu!

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Gabrielle Weber
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Written by Gabrielle Weber

Somente uma mulher trans se aventurando pelas famigeradas terras do estrogênio, enquanto tenta fazer ciência e educar. Artes marcias, café, música e RPG.

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