As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Octagésima Quarta Semana

Humilhações
Uma das partes mais difíceis, se não a mais difícil, em ser uma pessoa trans é essa constante negociação que temos que fazer diariamente sobre as nossas existências. Elas não são dadas, não são garantidas e estão sob constante disputa. Basta uma pessoa cis apontar o dedo que a ilusão é desacreditada. Da questão da passabilidade ao acesso a direitos básicos, tudo tem que passar pela aprovação de uma pessoa cis. São elas que julgam se parecemos suficientemente mulheres ou homens para sermos tratadas com o respeito que qualquer pessoa merece. São elas que atuam como leões de chácara na entrada dos banheiros permitindo, em toda a sua generosidade, a nossa entrada e permanência. São elas que avaliam se somos sãs o suficiente para podermos ter controle sobre nossas corpas. Estamos à mercê de seu consentimento, sem o qual resta apenas a marginalidade e a disforia.
Pessoas cis não precisam da chancela de ume psicólogue ou de ume psiquiatra para fazerem intervenções estéticas ou reparadoras em seus corpos. Então, por que nós, pessoas trans, deveríamos precisar? Talvez, porque, mesmo após a despatologização da transgeneridade, ainda nos enxerguem como doentes, loucas e incapazes de tomarmos decisões conscientes sobre nossas corpas. Não à toa, elas mesmas insistem em nos chamar de transexuais. Certamente, para enfatizar sua visão, que, neste cistema opressor, acaba sendo indistinguível da verdade para todos os fins práticos.
Devemos desconfiar de todas, mesmo daquelas que se dizem nossas aliadas. Afinal, não bastaram quatro anos de terapia, com o último ano particularmente dedicado à questão da cirurgia, para que a minha terapeuta, que afirmava estar comigo para qualquer coisa e que apoiaria qualquer decisão minha sobre o assunto, sentisse-se confortável para emitir o laudo me liberando para a cirurgia. Ela, que já vinha me enrolando há quase um mês, afirmou, na última sessão, quando a questionei mais enfaticamente, que não poderia autorizar que eu passasse por uma “amputação’’.
Em nenhum momento, ela demonstrou qualquer preocupação genuína sobre eu estar psicologicamente preparada e amparada para passar por um procedimento desse porte. Não era, de fato, sequer sobre mim, mas sim sobre seus preconceitos. As afirmações subsequentes deixaram isso bem claro. Ela não entendia, ou não aceitava, que alguém considerasse amputar algum órgão saudável. Não adiantava explicar para ela que não se tratava de uma amputação ou mutilação, porém de uma cirurgia reparadora. Ela estava irredutível.
Foram quatro anos tentando (e falhando em) fazer as pazes com o fato de eu ter nascido com um pênis. Foram quatro anos explicando como ter um pênis me deixava muito desconfortável comigo mesma. Como essa parte da anatomia não me pertencia. Foram quatro anos descrevendo o que é a sensação de uma vagina fantasma. Foi este último ano percebendo que, de fato, eu desejo ter uma vagina. Foi este último ano entendendo todos os pormenores dessa cirurgia: suas dificuldades, suas complicações e suas limitações. Acompanhei duas amigas muito próximas passarem por ela. Não poderia estar mais preparada. Não poderia estar num momento mais adequado da minha vida para passar por essa intervenção. Estava feliz, plena e em paz com quem eu sou.
Contudo, nada disso era suficiente. Será que ela realmente escutou alguma coisa do que disse ao longo desses quatro últimos anos? Ou apenas me encarava como um experimento de conversão? Em toda a sua insensibilidade, repetia ad nauseum o mantra dos gatekeepers. Eu, desesperada, chorava, mas parecia que isso não importava.
Senti como se o chão tivesse desaparecido sob os meus pés. Estava em queda livre e sem ninguém para me amparar. Sozinha. Absolutamente sozinha! Aos prantos, eu implorava. Deixe-me ser eu mesma. Do outro lado, ela, resoluta, respondia: faço isso com o melhor dos seus interesses. Hipócrita! Cruel! Desumana! Antiética! Não cabe a ninguém, se não a mim mesma, afirmar se estou pronta para esse tipo de jornada.
Não havia nada que eu dissesse que mudaria a sua posição. Desisti. Desliguei a chamada e deixei as lágrimas verterem. Havia tudo isso sido em vão? Desperdiçado quatro anos da minha vida com essa transfóbica enrustida? Tomou-me o desespero de ter que colocar a minha vida em espera por mais seis ou doze meses até convencer algume outre psicólogue do óbvio: de que estou pronta para enfrentar essa jornada. Não! Isso é inaceitável! Eu opero este ano, não me interessa o que eu tenha que fazer!
Ser trans é ter que se humilhar todo dia apenas para poder existir.