As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Primeira Semana

Gabrielle Weber
3 min readDec 19, 2020

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Estase

A adolescência certamente é um dos períodos mais conturbados de nossas vidas. Hormônios à flor da pele. O corpo em revoluções mil e a mente que lute para acompanhar. Hora de largar o conforto das bonecas e a segurança do faz-de-conta para se aventurar pelo mundo real. As primeiras paixões e as primeiras desilusões. A necessidade de se enturmar, ponderada pela vontade de se destacar. O medo de ser chacota na escola. Desprezada, esquecida, ostracizada.

Se passar por tudo isso nas condições normais de temperatura e pressão não é fácil, imagina quando se é diferente. Pior, quando não entendemos direito porque somos diferentes e não temos ninguém com quem desabafar. As pressões internas e externas tentando nos empurrar para uma direção que sabemos em nosso âmago, estar errada. O corpo ficava pesado, a cabeça funcionava mais lentamente. O vagaroso definhar com o crescer dos pelos e barba. O que era aquele fedor acre que passava a exalar? Estava suja e não tinha nada o que fazer para me limpar. Banhos não a lavavam. Ela estava entranhada em minhas veias: o veneno chamado testosterona. A corromper e estraçalhar o meu inocente corpo.

Mais desesperador era o fato de não conseguir elaborar em palavras tais sensações. Estava sufocada e não conseguia gritar. Queria chorar, mas isso já tinha me sido proibido há eras. Sabia que não podia confidenciar esses sentimentos com meus pais. Afinal, o que eles pensariam de mim? Internariam-me? Expulsariam-me de casa? Estava sozinha em minhas esperanças cada vez mais destroçadas. Presa em um limbo. Uma estase que duraria décadas. Já que não podia ser a menina que sempre fui, era melhor nem crescer.

A dissociação tomou diversas formas, desde as intermináveis brincadeiras com bonequinhos à imersão no mundo dos RPGs. O faz-de-conta era muito mais real para mim. Claro, nele eu podia ser exatamente quem eu sempre fui e não precisava vestir nenhuma máscara social. Um fardo que ficava progressivamente mais pesado. Não bastava mais fingir interesse por futebol, precisava máscarar o total desprezo que tinha por falar sobre sexo, punheta e pornografia. Não surpreendentemente, nessa época eu passava muito mais tempo com as meninas do que com os garotos. Óbvio que isso não ajudava muito com a minha fama na escola. Nem me satisfazia plenamente. Eu não era como elas. Uma estranha em um corpo estranho.

Como gostaria que as coisas tivessem sido diferentes. Que tivesse tido acesso aos abençoados bloqueadores de puberdade. De não ter passado por essa experiência atroz de desfiguração corporal compulsória, cujas marcas ainda custo a aceitar. Teria sido tudo tão mais fácil se meus pais estivessem dispostos a me escutar, a me abraçar e a me aceitar. Mas não, estavam tão imersos em seu próprio narcisismo, que a minha existência em contraponto aos seus anseios era impensada e deveria, pois, ser proibida. Eu era uma prisioneira de suas vontades. Melhor continuar criança a me tornar o homem execrável com quem eles sonhavam.

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Written by Gabrielle Weber

Somente uma mulher trans se aventurando pelas famigeradas terras do estrogênio, enquanto tenta fazer ciência e educar. Artes marcias, café, música e RPG.

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