As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Quadragésima Segunda Semana

Chega de concessões
Toda pessoa trans aprende desde cedo a importância de fazer compromissos em prol de sua sobrevivência. Muitas vezes, sequer nos damos conta do quê e do porquê estamos fazendo. Sabemos apenas nos soar falso ou errado, mas profundamente necessário. Seja para não apanharmos, seja para não sermos excluídas, pois sabemos, lá no fundo, que não pertencemos e que a qualquer deslize sofreremos as consequências de sermos quem somos. É uma existência solitária, não ter com quem desabafar. É uma existência desesperadora, não conseguir se entender.
Tentamos com todas as nossas forças nos adequar. Compartimentalizamos nossos sentimentos. Vestimos as máscaras que a sociedade nos impõe. Seguimos à risca os papéis que nos foram determinados ao nascer. Criamos filtros e mais filtros mentais na vã esperança de calar aquela voz que insiste em dizer que há algo profundamente errado. Talvez, se eu ouvir música muito alta, vou conseguir abafá-la. Talvez, se me ocupar demais, não vai sobrar energia para ela falar. Às vezes temos que recorrer a drogas, a comportamentos perigosos ou obsessivos. Uma hora ela deve dormir.
E nos acostumamos, nessa existência semi-anestesiada, esses hábitos viram uma segunda natureza. Nem mais sabemos por que os cultivamos. Miscigenados à nossa existência negligenciada, até parece que conseguiremos seguir adiante. De compromisso em compromisso, de concessão em concessão, de apagamento em apagamento, deixamos progressivamente de existir. Afinal, quem sou eu senão essa coleção de hábitos e sentimentos que não entendo.
Até que vem o basta! Muitas vezes resultado de nossa incapacidade de conseguir prosseguir nesse ritual de abnegações progressivas. Achamos, então, que com aquelas pequenas euforias trazidas pelo começo da transição, todos os nossos problemas serão prontamente resolvidos. Não surpreende. Para alguém que passou a vida inteira em uma prisão sem muros, essa liberdade de verdadeiramente ser é inebriante. Quase uma panaceia universal.
Pena que velhos hábitos não desaparecem como mágica. A gente continua tentando se adequar. Por mais que tentemos nos desconstruir, por mais que tentemos nos aceitar, há coisas com as quais simplesmente não conseguimos viver. Porém, continuamos a insistir em domesticá-las. Vai que. Algumas delas talvez já fossem nossas conhecidas de outrora, apenas soterradas ao longo dos anos de negação, já outras, nem tínhamos sido formalmente apresentadas. Era tanto e tão brutal que ficaram perdidas no ruído branco que atenuava a disforia e depois obscurecidas pelos primeiros momentos de euforia. Mas estavam lá e aparentemente não irão por conta própria, não interessa quanto esperemos. Precisamos parar de fugir e agir.