As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Quarta Semana
Dois Anos
Nem parece que já se passaram dois anos desde que a minha esposa ternamente colou o primeiro adesivo carregado de estrogênio em minhas costas na noite daquela fatídica segunda-feira cinzenta. Mas, também sinto como se uma eternidade tivesse se passado desde então. Paradoxal, como a nossa existência. Felicidades e tristezas mil. Aventuras e descobertas, como também muito medo e desespero. Não dá para dizer que foi fácil, nem que foi suficiente. Foi necessário. Foi um brado por vida em um contexto em que apenas a morte era certa.
Restam-me agora apenas as fugazes memórias daquelas primeiras semanas. Corpo em plena revolução. Tudo era novo. Assustador e ao mesmo tempo que delicioso. A expectativa misturada com a esperança de que meu corpo rapidamente correspondesse aos meus desejos. Tudo isso com pitadas de um terror profundo: e se não desse certo? Apenas as dores nos peitos que custavam a crescer para me assegurar de que o tratamento estava funcionando.
O emocional, por outro lado, respondeu muito mais rápido. De uma pedra, passei a manteiga derretida. Emoções sempre à flor da pele. Perdida em uma miríade de choros que custava a catalogar. Por mais que às vezes doesse, chorar era bom. Antes soltar essas angústias do que cultivá-las em meu âmago até que crescessem a ponto de me dominar e em seguida me obliterar. Era um mundo novo a explorar.
Contudo, nem todo mundo parecia estar de acordo. A transfobia nossa de cada dia. Não estava acostumada a sofrer com preconceito e ostracismo. Tinha crescido com a garantia dos privilégios que só um menino cis-het branco conhece. E agora, tudo se esvaia. Medo. Medo de apanhar na rua. Medo de ser expulsa do banheiro. Medo de perder tudo e todes ao meu redor. Quando que teria imaginado a aventura que seria fazer um simples xixi? Mas minha esposa estava ao meu lado nessas primeiras incursões em terra incognita para me proteger. Ela foi a minha rocha, o meu norte. Nunca estive sozinha, mesmo tendo sido abandonada por muitas pessoas que julgava que nunca o fariam. Porém, também conheci pessoas maravilindas que me acolheram e me ensinaram muitas coisas. Afinal, não é todo mundo que tem a sorte de ter uma mãe trans que também é orientadora, né?
E como a gente precisa de orientação. São muitas revoluções acontecendo ao mesmo tempo. Ninguém imagina o que é passar por uma adolescência depois dos trinta. Muito menos quão brutal ela pode ser. Desenvolver as habilidades que as mulheres da sua idade cultivam há décadas em semanas. Tudo isso enquanto se acostuma com um novo corpo que custa a se soltar, que custa a ser de fato seu. Afinal, você cresceu dura e rígida como a expectativa que seus pais tinham de você.
Isso sem falar na disforia. Ela não desaparece feito mágica. Muito pelo contrário continua à espreita e, em certos momentos, fica muito mais óbvia e devastadora. Os sonhos que antes habitavam apenas os mais desvairados devaneios, estão ao alcance das pontas dos dedos que custam a tocá-los. Tão perto, mas ainda tão longe. A pressa para ser você mesma e corresponder às expectativas. Mas não apenas às suas, como principalmente a dos outros. Infinitas pressões. Sou trans o suficiente? Sou feminina o suficiente? Estou passável? E a minha voz, muito grossa? Preciso fazer uma ffs? Esse gogó me denuncia, né? Preciso da srs? Afinal, para ser mulher trans tem que odiar a sua genitália, né? E meus peitos que não crescem. Quero silicone agora!
Não vou negar que quando completei meu primeiro ano de vida estava perdida nesses medos. Medos que me levavam não para o lado escuro, mas que fomentavam a minha disforia. Ela em sua violência plena me dominava. Qualquer coisa era motivo para odiar meu corpo. Doía ver as meninas que, com seis meses, já tinham peitinhos lindos e eu ainda uma tábua! Reta que me dava desespero. E a sombra da barba que custava a sumir? Era tamanho desespero que cheguei algumas vezes a pensar em me machucar.
Por sorte conheci pessoas que me mostraram outras formas de ser travesti. Um rótulo que me assustava no começo, para não dizer que me dava uma certa ojeriza. Mas, que com o passar do tempo, comecei a chamar de meu e a me reconhecer nele. Precisei de muita terapia e de muita paciência para começar a fazer as pazes com o meu corpo. Mas não tem sensação melhor do que se sentir confortável consigo mesma. Meus peitinhos mirrados, minha bunda pequena, minha testa enorme, minha neca, meu jeito desajeitado, meus olhos expressivos: essa sou eu. E cirurgia nenhuma vai resolver qualquer dissonância que porventura eu sinta, sem que eu antes reconheça essas características como minhas e pare de me julgar com os olhos alheios. Preciso aprender a me ver bonita como só eu posso ser. Afinal, foram apenas os dois primeiros anos dessa jornada que apenas começa a se desenhar sob meus pés. As possibilidades são infinitas. Preciso apenas de um pouco mais de paciência e deixar o tempo e os hormônios fazerem seu efeito.