As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Quinquagésima Nona Semana
Passando na Oficina
Essa semana, tive que levar o carro para fazer um reparo rápido na oficina da concessionária. Ir a ambientes como esse, que exalam uma misoginia acre, sempre me deixa ansiosa. Que tipo de violências vou sofrer? Desde o assédio, já infelizmente normalizado, ainda mais em ambientes ditos masculinos, dos olhares sexualizantes e das cantadas não requisitadas, até transfobias e agressões. Fico tensa, com a guarda alta, preparando-me para o pior.
Escolhi cuidadosamente a roupa: uma calça jeans skinny e uma camiseta mais longa, capaz de cobrir a minha virilha e simultaneamente acentuar a minha cintura, estampada com algumas das personagens femininas de Star Wars sobre um sutiã que privilegiava o parco volume dos meus nanosseios. O equilíbrio instável de ter que revelar suas curvas o suficiente para ser lida, reconhecida e tratada como mulher, mas que, ao mesmo tempo, não incitasse a necessidade masculina de dar em cima de você. Prendi meu cabelo no alto da cabeça, como me ensinaram ser o jeito feminino de fazer, coloquei minha pff2 e fui.
Chegando na oficina, fui prontamente atendida por um funcionário que já me conhecia de outras idas. Educado e respeitoso. Contudo, não deixei de perceber o peso de olhares que se fixavam em mim. Já havia um casal na antessala de espera. Mais coxinha impossível. Ele, um homem branco, já para lá da casa dos 50 anos, com cabelos bem grisalhos ficando ralos, usava uma camiseta polo branca com listras horizontais azuis, uma calça jeans e um sapatênis. Seus olhos vidrados, subiram das minhas pernas e pararam no meu busto, mas não sem antes se delongararem na minha bunda. Quase deixou cair o celular que tinha nas mãos. Por trás da máscara de pai de família honrado, escorria uma baba nojenta, sedenta de desejo. Ela, que devia ter seus quarenta e muitos, não ficou atrás, só que seu olhar, em vez de luxúria, estava carregado de inveja. Trajava um micro shorts branco e uma regatinha rosa. Sua pele artificialmente bronzeada combinava com o loiro falso de seus cabelos.
Eles se entreolharam com um ar de desaprovação, conforme eu terminava o check-in e me dirigia para me sentar no canto mais distante da microssala. Abri a bolsa, puxei meu tablet e comecei com a leitura que tinha separado para esse momento de espera: “A Coragem de Ser Você Mesmo”, um texto de 2014 do Preciado. Sem saber, não poderia ter feito uma escolha melhor. A vida e suas irônias! Eles conversavam baixinho, um quase cochichar.
O texto convidava a uma reflexão sobre a cena que se desdobrava diante dos meus olhos:
“Quando vocês vão se cansar de assistir à nossa ‘coragem’ como quem se posta diante de uma atração? Quando vocês vão se cansar de nos tratar como alteridade para se tornar vocês mesmos?”
Será que eles haviam me “clockado” e destilavam o seu desdém carregado de nojo e desejo pela corpa travesti que se sentava quase à sua frente? Ou será que estavam apenas chocados com as tatuagens que cobriam o meu corpo. Minha orelha coçava e eu me preparava instintivamente para as agressões por vir. Alguns minutos depois, retomaram o volume normal de sua conversa. Se agora falavam em alto e bom som para todes ouvirem sobre as futilidades de suas vidas de gado: a autofagia dos churrascos em família, as idiossincrasias de sua fé cristã e as dificuldades de seu filho em passar numa faculdade pública por causa das “injustas” cotas, certamente haviam cochichado sobre mim. O quê, nunca saberei.
Ao terminarem de marcar o território como casal dominante, voltaram para a insignificância de seus microcosmos digitais. Eu, que até então apenas observava cautelosa, continuei com a minha leitura:
“O sexo e a sexualidade não são propriedade essencial do sujeito, mas, sim, produto de diversas tecnologias sociais e discursivas, de práticas políticas de gestão da verdade e da vida. O produto da coragem de vocês. Não há sexos e sexualidades, mas usos dos corpos reconhecidos como naturais ou taxados de desviantes.”
Mas não demorou muito para ser novamente interrompida. Ele decidiu mostrar algo em seu celular para ela. O aúdio em volumes absurdos denunciava seu teor: uma agressão à uma travesti negra. O agressor berrava desde traveco a coisas que não ouso escrever. Transfobia e racismo descarados. Eles riam, faziam chacota e endossavam a agressão. Esse tipo de gente não merece existir, bradava o homem e sua mulher abanava a cabeça em completo acordo. O menino fofo da recepção, negro, estava acuado e sem saber como agir, apenas ficou quieto. Sabiam eles que do outro lado da minúscula recepção uma travesti os observava, julgava e, mentalmente, executava-os?
Vontade não faltou de terraplanar a cara dele na base do chute e do soco. Certamente, conseguiria. Quase duas décadas de kung fu na faixa tornaram o meu corpo franzino em uma arma, mas também me ensinaram que devemos escolher que batalhas lutar. Aquela estava perdida antes mesmo de eu me levantar. Seria divertido e irônico, mas o que ganharia com isso? Na melhor das hipóteses, um olho roxo. Esse tipo de gente é covarde e se esconde na bravata. Abutres ignorantes que mamam nas gordas tetas do Cistema, enquanto abusam daqueles que são menos iguais do que eles. Temem a diferença. Sobretudo, temem a diferença que reside em seus interiores e borbulha, ainda mais quando em ressonância com o exterior. Um misto de tesão e asco. Asco por sentirem um tesão proibido. Por isso escorraçam os corpos dissidentes. É metonímico, para não dizer patético. Acreditam que, ao nos agredir, matar e eliminar, conseguiriam expurgar a diferença que tanto os macula.
“Desejo que vocês não tenham mais força para reproduzir a norma, que não tenham mais energia para fabricar a identidade, que percam a fé no que os seus documentos dizem sobre vocês. E uma vez perdida toda a sua coragem, frouxos de alegria, eu desejo que vocês inventem um modo de usar para seus corpos. Porque eu os amo, desejo-os fracos e desprezíveis. Pois é pela fragilidade que a revolução opera.”
Certamente, eles ignoravam o fato de ter uma travesti ali naquela sala, tão próxima a eles. Afinal, como um corpo marginal como o meu poderia estar no mesmo ambiente? Como poderia acessar os mesmos privilégios que eles? Certa da proteção que a passabilidade, embora fugaz e condicional, concedia-me, eu ria comigo mesmo. A falência da cishetero norma escancarava-se perante os meus olhos.
Um pouco depois, o menino da recepção os chamou com o orçamento. Eles ficaram indignados. Gritaram. Espernearam. Só faltou agredirem o pobre coitado. Ele, irredutível e impassível, continuou explicando calma e detalhadamente o serviço que precisava ser feito. O homem, sem ter mais a que recorrer e com medo de perder a sua posição de macho alfa, aceitou, mas não sem antes se apropriar dos argumentos do menino da recepção, repetindo-os com um tom de desdém e obviedade. Um híbrido disforme de homexplicação com branquexplicação. Era imprescindível deixar claro quem (achava que) mandava ali. Chamaram um uber e, logo em seguida, sumiram na ensolarada avenida que curiosamente se chama padroeira do Brasil. Que ela os proteja de suas bravatas e lhes dê a fraqueza que tanto precisam!