As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Quinquagésima Semana

Gabrielle Weber
2 min readOct 9, 2021

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No templo do ódio

Faz tempo que não apareço por aqui. Quase um mês. Acho que nunca fiquei tanto tempo sem escrever. Certamente, não foi por falta de assunto. Apenas um caso agudo de falta de inspiração e capacidade para colocar as coisas no papel de uma forma minimamente ordenada. Afinal, aconteceu tanta coisa nesse período, exames com resultados não muito bons, a notícia de que meus pais viriam me visitar e alguns traumas antigos redescobertos, que mal consegui processar tudo.

Para piorar, estamos na iminência de mais um dia das crianças. Uma data repleta de gatilhos para quem teve sua infância severamente podada. Ver todo mundo mudando as fotos de perfil para uma de criança, e pensar que não há nenhuma foto minha em que eu realmente me reconheça. Transfigurada em um menino que eu nunca fui. Brutalmente forçada em um papel que não era meu. Por que, simplesmente, não me deixavam fazer as coisas que eu queria? Não eram desejos absurdos: ter as orelhas furadas, deixar meu cabelo crescer, brincar de me maquiar. Todas as outras meninas faziam isso corriqueiramente.

O porquê de eu não poder, nunca me foi claro. Só sabia que era proibido. Ensinaram-me em casa, na escola e na igreja que eu era uma aberração. Algo que não deveria existir. O pior, eu acreditei. Em minha inocência, eu rezava toda noite para um deus que nunca existiu, implorando para que me fizesse normal. Se não pudesse acordar como uma menina no dia seguinte, que, pelo menos, poupasse-me desses desejos, tornando-me um garoto como tanto queriam que eu fosse. Mas não. Minhas preces se perdiam no vácuo do desespero. No abismo de uma agonia infindável. Estaria rezando errado? Ou era a minha fé que não era forte o suficiente?

De todo jeito a culpa deveria ser minha. Tratava-se, certamente, de uma punição para algum pecado enorme que cometera. Mas qual? Não tinha ninguém com quem confidenciar. Não tinha ninguém com quem desabafar. Mergulhada em um ódio que não era meu, aprendi a me odiar. E junto comigo, tudo o que era diferente. Era só sobre isso que falavam. Era só para isso que doutrinavam. Não poderia ter sido diferente, tornar-me-ia também uma escrava do ódio. Como gostaria que alguém tivesse me aberto os olhos para essa espiral autodestrutiva que começava a percorrer. Alguém que me falasse para não ouvir as mentiras que pregavam e todo o ódio que propagavam em nome de um deus da destruição. Alguém que me salvasse desse inferno. Mas não. Estava sozinha.

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Gabrielle Weber
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Written by Gabrielle Weber

Somente uma mulher trans se aventurando pelas famigeradas terras do estrogênio, enquanto tenta fazer ciência e educar. Artes marcias, café, música e RPG.

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