As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Quinquagésima Sexta Semana

Máscara Despedaçada
Quem sou realmente eu? Eis uma das perguntas que me assombra, desde que iniciei essa jornada de autodescoberta e autoaceitação, no final de maio de 2018. Ela tem uma irmã ainda mais cruel. O que eu absorvi de outros para sobreviver? A sensação paralisante de que eu sou uma colcha de retalhos alheios, para não dizer uma versão moderna e mais macabra do monstro do doutor Frankenstein. O quanto eu tive que me anular, ao ponto de esquecer completamente quem eu era?
Despersonalização e dissociação, as gêmeas que me acompanham desde que consigo me lembrar. Uma infância toda sendo repreendida. Não sente assim. Não ande assim. Não gesticule assim. Não fale assim. Isso não é para você. A violência sutilmente onipresente deixava absolutamente claro quem eu não podia ser. Para piorar, toda a decepção que meus pais não se esforçavam nem um pouco em esconder. Mas quem eles esperavam que eu fosse?
O resultado foi que aos poucos me tornei uma criança cada vez mais retraída e insegura, para não dizer medrosa. Não podia mais errar. Não podia ser a decepção, a vergonha que sentia ser. Observava tudo ao meu redor. Como os meninos se portavam. O que agradava meus pais. O que eles tanto exaltavam no meu irmão mais novo. Copiava tudo o que podia e adaptava o resto. Procurava por sua aprovação em tudo o que fazia. Afinal, o que eu mais queria era que eles se orgulhassem de mim. Claro, não foi um processo tão consciente quanto o que descrevo aqui, mas um que estava sempre rodando no meu subconsciente. Um processo desenfreado e desesperado de substituição de rotinas, até eu não mais me reconhecer. Não mais saber o que era, de fato, meu e o que eu havia copiado. Restava apenas uma autômata de suas vontades.
Não apenas vestira a máscara que a sociedade, através dos meus pais, queria que eu usasse, ela se tornara indistinguível do meu próprio rosto. Um rosto que sabia não ser meu. O apagamento havia sido tão eficiente, que sequer questionar a materialidade da minha existência era possível. Sentia apenas um vazio inominável. Talvez todes se sentissem assim. Talvez fosse apenas parte do amadurecimento. Estava ficando adulta?
Muito pelo contrário, havia sim parado o meu processo de amadurecimento. A criança fora colocada em uma estase indefinida e quase completamente esquecida. Restava apenas um Prometeu moderno desprovido de alma e de vontade. Alguém que seguia no automático olhando a vida de fora e sem cores. Alguém que sonhava em um dia poder existir, porém que via esse sonho cada vez mais improvável, para não dizer impossível.
Agora com a máscara despedaçada, sinto-me um híbrido de criança, adolescente e adulta que busca desesperadamente descobrir quem é. Aos poucos, separando e descartando aquilo que há eras, quase imemoriais, copiara de outros e descobrindo o que, de fato, é meu. Aprendendo a viver, a sentir e a existir. A insegurança e a necessidade mórbida de aprovação e de validação em tudo o que faço ainda são uma herança maldita que tenho que lidar. Felizmente, com esse meu desabrochar recente e o subsequente desemaranhar do outro, a segurança de uma existência plena e própria começa a surgir.