As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Quinquagésima Terceira Semana

Gabrielle Weber
3 min readOct 16, 2021

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Protagonista

Há pouco mais de dois anos, tomei uma das decisões mais abruptas e importantes da minha vida: parar de falar com meus pais. Tinha acabado de passar pouco mais de uma semana viajando com eles. Era a primeira vez que eles me viam de verdade. As coisas até pareciam que estavam bem. Eles pareciam se importar comigo e se esforçar para me aceitar, para me tratar com respeito. Mas havia alguma coisa profundamente errada. Não sabia ainda o que, apenas que algo me incomodava muito.

Jamais teria sido capaz de entender o que acontecia, se não tivesse me afastado. Saído da asa. Um cantinho seguro, por mais desconfortável que fosse, em que me aninhara por mais de três décadas. Precisava olhar para mim com as minhas próprias métricas e medidas. Quem eu era e quem eu queria ser? Um basta para a infindável necessidade de aprovação. Cansada de me moldar às suas necessidades e desejos. Não tinha como transicionar sem antes proclamar a minha independência. Uma cisma, uma cisão necessária para eu poder enfim me encontrar.

Foram mais de dois anos de muita terapia. Um processo árduo e traumático para me conhecer, desenterrando trauma atrás de trauma e desejo frustrado atrás de desejo frustrado. Percebendo o quão sem propósito a minha vida tinha sido até então. O quão vazia e infeliz eu era. Tinha me acostumado tanto àquela existência miserável, que mal sabia o que era ser feliz. Estava sempre à procura de algo que preenchesse aquele vazio enrome que sentia. Mal sabia que tudo o que eu precisava estava tão próximo. Eu só precisava me permitir ser eu mesma.

E quando digo ser eu mesma, não quero dizer apenas deixar a menina que sempre fui aflorar. Apesar de no começo da transição, ter acreditado piamente que isso seria o suficiente. Eu precisava deixar essa menina ser livre das amarras que aos poucos foram podando toda a minha espontaneidade. Precisava aprender a me desemaranhar do outro e, sobretudo, dos meus pais. Precisava aprender a ser eu mesma, em toda a minha singularidade.

Por bem ou por mal, eu nunca tinha podido crescer. Uma criança eternamente aprisionada num corpo adulto que tinha que bater continência para os pais e se curvar a todos os seus desejos, numa infindável busca pela validação. Como eu queria ter sido o filho perfeito. Mas como, se nem menino eu era? Claro que não ter passado pela adolescência de verdade na época certa contribuiu, e muito, para esse não amadurecimento. Mas não era só isso. Meus pais tiveram um papel fundamental nessa estase em que me encontrava. Era conveniente para eles.

Cortá-los da minha vida me permitiu finalmente crescer e amadurecer. Aprender a caminhar com as minhas próprias pernas, a assumir as minhas próprias responsabilidades, a ousar ser eu mesma e me permitir errar. Foi libertador. Foi desesperador! Foi excitante! Nada como sentir o vento do desconhecido soprando em seu rosto pela primeira vez. Permitir ser irresponsável de vez em quando e viver essa adolescência tardia. Não há melhor sensação do que ser a protagonista da sua própria vida.

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Written by Gabrielle Weber

Somente uma mulher trans se aventurando pelas famigeradas terras do estrogênio, enquanto tenta fazer ciência e educar. Artes marcias, café, música e RPG.

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