As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Segunda Semana

Gabrielle Weber
2 min readOct 17, 2020

--

Dia das Crianças

Crianças trans existem e não é porque elas não puderam transicionar durante a infância que deixaram de ser crianças trans. Infelizmente, a discussão sobre a transição durante a infância é um tópico ainda muito recente. Pudera, até a última década era praticamente impossível encontrar informações minimamente confiáveis e livres de transfobia que não fossem extremamente nichadas. Isso sem falar em conseguir o apoio médico adequado para permitir que a criança não passasse pela adolescência errada.

Não foi o meu caso. Filha da década de 1980, época em que travesti era sinônimo de prostituta ou transformista em programa de televisão. Fosse apenas o caso de meus pais não saberem o que fazer com uma criança trans, mas tivessem me deixado experimentar com a minha expressão de gênero, talvez tivesse vivido minha infância. Contudo, eles insistiram em me doutrinar para ser o que eles esperavam de um homem heterossexual. Não pode sentar assim! Não pode andar assim! Não pode falar assim! Não pode gesticular assim! E de não em não fui me transformando em quem não era para não sofrer ainda mais represálias. Menino tem que gostar de futebol. Eu odiava. Menino tem que ter namoradinhas, mas tudo o que eu queria era uma amiga com quem brincar de boneca.

Quanto mais eles insistiam, mais os meus desejos eram soterrados. Sonhos cada vez mais distantes, relegados para o mundo da fantasia. Despersonalização. Não havia espaço para diálogo. E mesmo quando me percebi uma criança trans, sabia que não podia pedir ajuda. Só os tornaria mais agressivos em sua sagrada missão. Guardo ainda uma imensa mágoa dos meus pais. Mágoa que não sei se um dia serei capaz de superar. Eles, que deveriam ter me abraçado nesse período conturbado e me ajudado a crescer feliz e plena, só salgaram a terra.

Ainda não consegui aceitar que não pude transicionar mais cedo. Não só as marcas que o envenenamento por testosterona deixou em meu corpo, mas também todas as travas comportamentais que ainda preciso superar, lembram-me do terror que passei ao crescer. Não gosto da narrativa de corpo errado, mas certamente é o que sinto que meu corpo se tornava com a chegada da puberdade. Dia das crianças ainda é uma data muito complicada. Repleta dos mais diversos gatilhos. Sei que deveria ficar feliz ao saber que muitas crianças trans não precisam passar pelo horror que passei. Contudo, tudo o que consigo sentir é inveja. Como gostaria de ter sido agraciada com pais que me entendessem e me ajudassem a florescer.

Sign up to discover human stories that deepen your understanding of the world.

Free

Distraction-free reading. No ads.

Organize your knowledge with lists and highlights.

Tell your story. Find your audience.

Membership

Read member-only stories

Support writers you read most

Earn money for your writing

Listen to audio narrations

Read offline with the Medium app

--

--

Gabrielle Weber
Gabrielle Weber

Written by Gabrielle Weber

Somente uma mulher trans se aventurando pelas famigeradas terras do estrogênio, enquanto tenta fazer ciência e educar. Artes marcias, café, música e RPG.

Responses (1)

Write a response