As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Segunda Semana

Um outro conto de Newtal
Não vou entrar em muitos detalhes no porquê, afinal vocês que me acompanham há algum tempo já sabem da importância do Newtal de 2017 para a minha transição. Toda a iminência da calvície e a urgência em transicionar. Mas desde então se passaram três anos que não apenas mudaram meu corpo, mas minha relação com tudo, em particular, com a minha família. Crescer em um lar dissimuladamente opressor me negou muitas experiência e sobretudo forjou uma codependência mórbida com a minha mãe. Eu não passava de uma mera extensão dela.
Essa conexão ficava ainda mais forte no natal, data que ela amava e fazia questão de reunir a família inteira. Como boa narcisista, queria mostrar para todo o universo quão perfeita era a sua família. A festa era sobre ela e seus desejos. Claro, ela sabia nos engajar e eu piamente acreditei por todas essas décadas que, de fato, fazia parte. Que também era sobre mim. Só que nunca foi. Eu era apenas mais uma engrenagem dessa peça teatral.
A pressão para que tudo fosse perfeito sempre foi enorme. Ainda mais depois que eles se mudaram para além mar. Os preparativos, no melhor estilo câncer de natal, começavam com meses de antecedência e qualquer menção que fizesse de que não estava a fim de viajar naquele ano era prontamente respondido com lágrimas. Eu não podia estragar o seu natal. Mais ainda, eu devia a ela uma festa perfeita. Nessas horas, a codependência falava muito alto e até 2018, com raras exceções muito bem justificadas, eu sempre cedi. O revertério quando descobriram o motivo de eu não querer passar o natal daquele ano foi épico. Certamente, esperavam usar as festividades para tentar me convencer a não transicionar.
Contudo, só conseguiram me afastar, em um primeiro momento, era apenas o instinto de autopreservação. Mas conforme o tempo passava, mais percebia quão tóxica era a onipresença deles em minha vida. Quanto eu me anulei para me encaixar no ínfimo espaço que eles relegaram para mim. Não mais. Ressignificar o natal era necessário. Não bastava eu bradar a minha independência, tinha que demarcá-la. E nada mais simbólico do que a festa favorita da minha mãe.
Não vou negar que a quarentena facilitou bastante as coisas esse ano. Não havia nenhuma necessidade em justificar por que não viajaria. Entretanto, também não posso deixar de comemorar efusivamente o fato de que passei o primeiro Newtal em minha casa com a minha família. Ela é pequena, somos só a esposa e eu. Mas quem precisa de mais? Claro, é gostoso ter a casa cheia para uma festa, contudo qual é a graça quando tudo se é artificial seguindo um roteiro predeterminado e estanque? Dessa vez não. Foi tudo tão natural. Tudo tão fluido. Tudo tão gostoso e genuinamente divertido. Cozinhei. Comi. Dancei. Festejei. Além de tudo isso, pude encontrar um pedaço perdido da minha infância. Ganhei a minha primeira Barbie.