As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Septuagésima Terceira Semana

8 de Março: diversidade, lutas e atuações das mulheres na Universidade na ótica da Gabi
Essa semana, fui convidada a escrever um depoimento sobre a minha trajetória de vida para integrar a matéria especial de 8 de março do jornal da USP. Apesar de o resultado ter ficado excelente, de fato, uma das melhores e mais respeitosas interações que já tive com jornalistas, gostaria de compartilhar nesta coluna a versão completa do texto que escrevi.
O ano era 2002, depois de pouco mais de uma década enclausurada no falso moralismo de escolas conservadoras e católicas, estava, enfim, livre. Pelo menos era o que aquela inocente garota, que, por quase 18 anos, fora forçada a se fantasiar de menino, achava que a USP lhe proporcionaria. Será que finalmente encontraria outras pessoas como eu? Ou melhor, será que finalmente poderia ser eu mesma? O sonho, infelizmente, durou pouco. Logo percebi que o Instituto de Física não era muito diferente. Sob a fachada de modernidade da vanguarda científica nutriam-se os mesmos preconceitos: a misoginia descarada, as piadas homofóbicas, as chacotas com as travestis que faziam pista na avenida do jóquei.
Continuava sozinha e sem perspectiva de sair do armário. Nem a transferência para o ambiente mais acolhedor e diverso do Curso de Ciências Moleculares se provou suficiente. Muito pelo contrário, a homofobia e a transfobia só se tornaram mais manifestas e com elas a prisão sem muros ganhava diariamente mais tijolos. A percepção aterradora, de que para ser eu mesma deveria ser alguém antes, ficava cada vez mais clara.
Com condições iniciais tão adversas, precisava criar as condições de contorno adequadas. Não queria acabar nas ruas, prostituir-me, ou pior, ser apenas mais uma na inglória estatística que faz do Brasil o país que mais mata transfemininas no mundo. Queria fazer ciência e isso significava abster-me da minha essência. Mal sabia à época que a transfobia roubaria a minha juventude. Não foi na graduação, nem durante o doutorado, muito menos ao longo da incerteza que são os anos de posdoutoramento. Precisei da segurança de uma posição permanente para poder ousar ser eu mesma e transicionar.
Não nego, foi, sobretudo, um ato de desespero. Uma última tentativa. Não dava para continuar vivendo aquela farsa. Como diria um professor antes tarde do que mais tarde. Não foi fácil e, por mais que a conscientização da sociedade e a legislação tenham melhorado muito, o cistema ainda não está preparado para nos acolher. A voz, que por mais de três décadas foi silenciada, não vai mais se calar. Não quero que mais nenhuma pessoa trans tenha que passar pelo terror que sobrevivi.