As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Sexagésima Quarta Semana

Um novo ano, um novo normal!
Normalidade, uma palavra tão alienígena quando se trata de uma vivência trans. Afinal, o mundo cis insiste em nossa alteridade. Em hierarquias. Em binários. Quase um nós contra elus. Assustados por algo que não compreendem. Temem. Deixam de ver nuances. Ignoram continuidades e excluem a beleza que é a diversidade na natureza. Tudo em prol de um mundo em preto e branco, mas que lhes parece controlado. Subjugado. Ledo engano.
Não sei o quanto posso creditar à pandemia e ao subsequente contato social mediado quase que exclusivamente pelo computador e o quanto posso atribuir ao meu amadurecimento, só posso afirmar que quase esqueço que sou trans no meu dia a dia. Não fossem os hormônios que preciso tomar em horários minimamente regrados para evitar uma TPM, acho que esqueceria completamente. Tudo parece tão normal. Como se sempre tivesse sido assim.
Minha transição já não mais ocupa uma parcela significativa do meu dia. De fato, ousaria dizer que minha transformação em mim mesma está quase completa. Com pouco mais de três anos de hormônios, não espero mais nenhuma mudança significativa que não venha da faca. Claro, ainda acho (e torço muito para) que minhas nanotetas evoluam mais um pouco. Entretanto, não consigo ver mais nada acontecendo naturalmente. Sei que ainda tenho uma grande barreira de potencial para tunelar, mas não é sobre ela que se trata este texto. Quem sabe num futuro, quando estiver mais confortável, discuta mais sobre isso.
É estranho, quase surreal, para ser honesta, pensar na trajetória que me trouxe até aqui. Não mais me enxergo nas fotos de outrora. Resta um ilustre desconhecido que poderia passar por algum irmão ou primo. Mesmo as memórias dessa época estão distorcidas. Parecem remotas e aos poucos desvanecem no mais profundo esquecimento. É como se tivesse nascido há três anos e nada dessa pré-história importasse.
Finalmente, eu me encontrei, formatei meu corpo e mente. Desaprendi hábitos que me foram impostos e reaprendi a ser genuinamente eu mesma. Eu sou uma menina meiga que gosta de rosa e de preto, e de roxo também. Adoro pintar as unhas e de passar cremes, óleos e sei lá mais o que para cuidar da pele do rosto e do corpo. Não me apaixonei pela maquiagem como achava. Talvez, porque no processo tenha aprendido a amar o meu rosto e de uma forma infeliz, a maquiagem tenha sido associada a esconder e a disfarçar as cicatrizes que a testosterona deixou no meu rosto. Contudo, a despeito delas, existe beleza. Talvez, em parte, devido a elas também.
Continuo gostando de ouvir e tocar metal (um pouco mais extremo hoje em dia, mas metal mesmo assim), de RPG, de jogos de tabuleiro, de artes marciais, de física, de matemática. Nada disso mudou. Entretanto, permiti-me gostar de outras coisas. Coisas que antes julgava inimagináveis, simplesmente porque quebrariam a máscara. Como dançar, rebolar, ser vaidosa. Adoro comprar roupas e sapatos. Investir minutos escolhendo o visual e depois, horas, apreciando-me na frente do espelho. Sou bonita. Enfim, depois de quase duas décadas com cabelo longo, assumi a cabeleira. Ela vive livre, solta e está mais bela e cuidada do que nunca. Abracei também o meu lado freak. Não vejo a hora de estar coberta de tatuagens e toda furadinha.
E são essas as coisas que agora ocupam o meu dia. Claro, há ainda o medo inerente em ser travesti no país que mais mata pessoas trans. No entanto, ele não é mais paralisante. Em parte, por conta da segurança da passabilidade. Em parte, porque eu simplesmente cansei de me esconder, de viver acuada. Continuo escrevendo e falando sobre transgeneridade, de fato, virou até um tema de pesquisa. Milito. Porém, já não é mais o meu foco. Trata-se apenas de mais uma faceta desse ser multidimensional que me tornei. Não existe mais o mesmo alumbramento de outrora em desbravar essas Terras. Elas já estão minimamente bem cartografadas, salvo uma ou outra caverna. Talvez seja por isso que ao longo do último ano a frequência destes textos diminuiu. Talvez, esteja chegando a hora de virar mais uma página na minha vida. Nem tudo é para sempre. Ainda bem! Abracemos as mudanças!