As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Sexagésima Terceira Semana

Gabrielle Weber
3 min readDec 26, 2021

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Natal em família

Final de ano é sempre uma época muito tensa e difícil para as pessoas LGBTQIA+. A iminência das festas evoca toda a ansiedade associada ao show de horrores que pode ser um encontro forçado com a família. Nem todes saímos do armário ainda e, por isso, temos muitas vezes que performar uma cisheteronormatividade nauseabunda. Mesmo aquelus de nós assumides não estão livres das piadinhas, das humilhações e das agressões. Essa tal da família tradicional brasileira pode ser muito cruel. Isso sem contar aquelas que simplesmente renegam sues filhes, irmãnes e demais parentes apenas por conta de seu gênero ou sexualidade. Tudo em nome de uma foto. Tudo em nome de uma fachada de perfeição. O sonho da família doriana.

Infelizmente, ainda são poucas famílias que nos acolhem e apoiam. Sabemos, e muito bem, do preço de sermos nós mesmes. Pagaria de bom grado quantas vezes fosse preciso. A sensação de poder ser você mesma é incomparável. Indescritível. Não existe nada melhor. Nada mais inebriante. Pessoas cis hétero jamais serão capazes de compreender a magnitude do privilégio que a sociedade as concede. Mas, nessa época do ano esse exílio pesa mais. Sinto como se o coletor de impostos passasse para recolher toda uma expectativa acumulada por quase quatro décadas.

Cresci em uma família, que, apesar das dificuldades econômicas, sempre fez questão de festejar o natal. Era símbolo de união, de felicidade. Uma celebração de amor e aceitação. Natal e estar em família eram sinônimos para mim. Uma época do ano que eu ansiava. Como adorava montar a árvore de natal e decorar a casa com a minha mãe. Era a festa dela. Foi impossível não derramar algumas lágrimas, nessa última sexta, conforme descascava algumas castanhas portuguesas. Algo que ela adorava fazer. Senti-me só. Desconsolada. Pequenas felicidades de um passado que nunca mais voltará.

Desde que assumi minha travestilidade e lesbianidade, a relação com a minha família tem sido muito conturbada. Fui execrada. Acusada de destruir a nossa família antes tão perfeita. Fiquei mais de dois anos sem falar com meus pais. Lidando sozinha com uma culpa que nunca foi minha. Aos poucos estamos reatando os laços. Do meu lado, muito mais para exorcizar essa culpa de tê-los cortado da minha vida do que qualquer outra coisa. Não nego, contudo, o desejo, lá em meu mais profundo âmago, de ter novamente aquela gostosa sensação de pertencimento familiar que só mãe e pai podem dar. No entanto, não existem desculpas capazes de apagar o que disseram, o que fizeram. Nada será jamais como antes. As cicatrizes não me deixam esquecer.

Foi simultaneamente bom, estranho e desconfortável falar com meus pais nesse natal. Primeira vez que temos uma conversa civilizada nessa época do ano desde que transicionei. Nada muito profundo. Mas, não é como se algum dia tivesse sido. Uma das coisas mais cruéis que a transição e essa cisma com meus pais me fez perceber foi como a nossa relação era rasa. Eles nunca me conheceram. Talvez, jamais tenham se interessado em me conhecer. Nossa família vivia sob essa fachada de perfeição que nunca existiu. Ao mesmo tempo que essa percepção me ajudou a desconstruir meus pais, antes vistos como pessoas perfeitas e inalcançáveis, ela também tirou um pouco do brilho dos natais de outrora. Havia tudo sido uma ilusão?

Não sei. Será que faz alguma diferença? As memórias estão lá e, como boas lembranças, não precisam corresponder à realidade. Talvez, tenha sido uma das formas que eu encontrei para sobreviver a essas mais de três décadas de tortura cisheteronormativa. Talvez, a lição seja a de que o conceito de família tradicional está errado. Que não passa de uma invenção do patriarcado para cercear nossos direitos e sonhos. Talvez, já tenha passado da hora de quebrarmos esses falsos laços de sangue que nada, além de uma série de opressões e silenciamentos, representam. Família é quem nos acolhe em nossos momentos mais tenebrosos. É quem celebra nossas conquistas. É quem está junto por você e não por interesse. E nessa nova concepção ressignificada de família, a minha é linda: apenas a esposa e eu. E isso é muito mais do que o suficiente para ser feliz.

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Gabrielle Weber
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Written by Gabrielle Weber

Somente uma mulher trans se aventurando pelas famigeradas terras do estrogênio, enquanto tenta fazer ciência e educar. Artes marcias, café, música e RPG.

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