As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Vigésima Nona Semana

Gabrielle Weber
3 min readApr 25, 2021

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Exposição

Desde que tornei pública a minha transição e comecei a militar explicitamente pela causa trans, os convites para participar de debates, entrevistas, mesas redondas e até de pesquisas de cunho científico têm se tornado cada vez mais frequentes. Não é raro receber dois ou mais por semana. A pletora não é surpreendente, se pensarmos que ainda são pouquíssimas as histórias de sucesso de pessoas trans. Em particular, quando consideramos quão mais cisheteronormativo é o ambiente acadêmico devido ao filtro da chamada meritocracia, que, de mérito não tem nada, servindo apenas para acentuar as desigualdades e fortalecer o status quo. Junte-se a isso a curiosidade mórbida que a cisgeneridade tem sobre nossos corpos e histórias e temos um prato cheio de ignorância, fetichização e objetificação.

No começo, tomada pela excitação de poder amplificar a minha voz e ajudar a dirimir as mentiras que a cisgeneridade ama espalhar sobre pessoas trans, aceitava todos. Sem pestanejar. Felizmente, o acaso me protegeu muito nesse começo e não acabei em nenhuma situação constrangedora ou sendo usada pelo inimigo. Eventualmente, quando a sorte acabou, já estava calejada o suficiente, particularmente, devido ao incessante assédio dos travequeiros, para saber separar o que seria uma oportunidade de fala de uma cilada.

Existem padrões comportamentais e aprender a discerni-los é de suma importância para sobreviver com o mínimo de sanidade na militância. Ainda estou longe de ser uma especialista e esse texto não tem a menor intenção de servir como um guia sobre como evitar esse tipo de assédio. No máximo quero fomentar uma discussão sobre o tema.

A experiência que me abriu os olhos para esse perigo começou como quase todas as outras: com uma mensagem privada em minhas redes sociais. Ela dizia algo do gênero: “Estou querendo escrever um livro sobre transexualidade e gostaria de lhe entrevistar.” A essa época, já estava claro o suficiente o quão errado é o uso indiscriminado da palavra transexual para me alertar da cilada que estava prestes a cair. Mas mesmo assim, a curiosidade falou mais alto e respondi à mensagem dizendo que não me importaria de participar, caso ele esclarecesse adequadamente algumas dúvidas que eu tinha sobre o projeto. Tratava-se, contudo, de uma empreitada extremamente transfóbica e de cunho religioso, cujo único intuito era demonizar ainda mais as pessoas trans. Por mais que eu tenha me recusado a participar, não duvido que ele tenha conseguido pessoas ingênuas ou má intencionadas o suficiente para levar a cabo sua ideia.

Desde então, todo convite que recebo é respondido com uma série de questionamentos. Quando se trata de uma entrevista, mesa redonda ou seminário, quero saber qual é o canal, seu público alvo e agenda política, que plataforma será usada, como será feita a mediação, quem serão es outres participantes e, não menos importante, quais serão as perguntas. Nunca participe de uma entrevista sem saber de antemão as perguntas que lhe serão feitas! Já para participação em pesquisas sou ainda mais criteriosa. Quero saber detalhes sobre o questionamento que norteia o estudo, quais são as hipóteses, quais são as fontes, que termos utiliza, quem é a equipe e se há um comitê de ética envolvido. Só quando todas essas perguntas são respondidas adequadamente que eu invisto meu tempo.

Já passou da hora de valorizarmos o conhecimento que adquirimos, seja através de nossas vivências ou estudos. Não se trata apenas de não desperdiçarmos o nosso tempo e energia, mas, principalmente, de não compactuarmos com um cistema que visa apenas nos objetificar e destruir. Por outro lado, a nossa luta por direitos básicos e igualdade de oportunidades só pode avançar com um diálogo franco com a cisgeneridade. Infelizmente, temos séculos de preconceitos e ideias muito equivocadas a desmantelar. Precisamos ser pacientes e didátiques. Não é fácil. E tudo bem se você, como uma pessoa trans, não se sente confortável ou preparada para esse tipo de exposição. Realmente, é algo muito taxativo. Fica apenas o meu alerta para tomar muito cuidado com quem se dialoga.

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Gabrielle Weber
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Written by Gabrielle Weber

Somente uma mulher trans se aventurando pelas famigeradas terras do estrogênio, enquanto tenta fazer ciência e educar. Artes marcias, café, música e RPG.

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