As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Vigésima Quinta Semana

Gabrielle Weber
3 min readMar 28, 2021

--

Corpo

A quem realmente pertence o seu corpo? Pode parecer uma pergunta um tanto quanto estranha. Certamente, aposto que a primeira resposta que passou pela sua cabeça foi um óbvio e definitivo a mim. Mas, vamos com mais calma e reflitamos um pouco. Você pensa com que roupa vai sair de casa e se ela não expõe demais o seu corpo? Você fica receose ao colocar roupa de banho antes de ir para a piscina ou para a praia? Vão me achar gorde ou que meu corpo é de alguma forma estranho são questionamentos que você faz nesses momentos? Você pensa em qual vai ser a reação das pessoas e o impacto sobre a sua empregabilidade antes de fazer um piercing ou uma tatuagem, ainda mais quando é algo mais complicado de cobrir com a roupa ou o cabelo? Se você respondeu sim a qualquer uma dessas perguntas, sinto-lhe informar que seu corpo não lhe pertence. Ele pertence a sociedade!

É uma sensação estranha de despertencimento. Um tênue mal estar que, muitas vezes, não conseguimos precisar. Uma insegurança quase imperceptível. Uma série de desejos frustrados. Claro, varia de pessoa para pessoa, eu sei o quanto demorei para entender isso. De fato, só percebi ao acaso, poucos anos atrás, quando comecei a quebrar esse ciclo opressivo com a minha primeira tatuagem. Até então, meu corpo tinha sido propriedade exclusiva dos meus pais. Era impensável maculá-lo com meus desejos: de brincos a tatuagens, passando pela necessidade subjacente de hormonizá-lo e reverter os efeitos do envenenamento por testosterona.

Chega a ser engraçado pensar em como esse pequeno ato de rebeldia, planejado por anos, mas decidido no ímpeto do momento, mudou completamente a minha vida. Lembro da vergonha e da discrição com que fui ao estúdio naquele fatídico sábado de 2016. Nada poderia ser registrado ou publicado nas redes sociais. Ela deveria ser estrategicamente posicionada e de tamanho adequado para que pudesse ocultá-la facilmente. Ninguém poderia saber de sua existência, muito menos os meus pais. Por outro lado, também não poderia ser pequena e delicada demais. Afinal, não era para se parecer com uma tatuagem de menina. Ninguém poderia desconfiar de quem eu realmente era.

Eu me senti quase como uma criminosa naquele dia. Mas graças a essa sensação que pude começar a entender e, posteriormente a quebrar, esse despertencimento corporal, essa despersonalização. Não foi um processo fácil, curto, muito menos linear. Tomou mais dois anos, uma tatuagem na coxa, um piercing no umbigo, também feitos na surdina, e uma tentativa de suicídio para que contemplasse tomar atitudes mais drásticas. Veio a hormonização, mais algumas tatuagens e mais sei lá quantos furos para, enfim, começar a me sentir em casa em meu próprio corpo.

A vergonha de ser eu mesma e, sobretudo, mostrar a minha verdadeira face começou gradativamente a diminuir. A terapia ajudou a entender esse processo, enquanto que os momentos de euforia de gênero o alimentavam. Fazia bastante tempo que não refletia sobre essas coisas. Não sei se foi a tatuagem que fiz na minha mão, ou piercing que fiz no nariz ou o fato de meus peitos terem voltado a crescer nessas últimas semanas, mas ultimamente tenho me sentido tão eu mesma. E não é mais aquela sensação forçada de autorreconhecimento. É uma leve euforia ao encontrar a minha imagem no espelho. É uma sensação de unidade ao andar e perceber o balançar dos meus braços. É um leve desconforto com o pulular dos meus peitos. É uma liberdade de poder dançaricar, sorrir, cantarolar e chorar. Acho que, finalmente, comecei a existir. Meu corpo, minhas regras!

Sign up to discover human stories that deepen your understanding of the world.

Free

Distraction-free reading. No ads.

Organize your knowledge with lists and highlights.

Tell your story. Find your audience.

Membership

Read member-only stories

Support writers you read most

Earn money for your writing

Listen to audio narrations

Read offline with the Medium app

--

--

Gabrielle Weber
Gabrielle Weber

Written by Gabrielle Weber

Somente uma mulher trans se aventurando pelas famigeradas terras do estrogênio, enquanto tenta fazer ciência e educar. Artes marcias, café, música e RPG.

No responses yet

Write a response