As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Vigésima Sétima Semana

Gabrielle Weber
3 min readApr 10, 2021

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A complicada arte de dizer não

Não nos ensinam a dizer não. Muito pelo contrário, devemos evitá-lo a todo custo. Uma palavra mal vista para não dizer proibida. Afinal, precisamos nos conformar com a sociedade, com a família, com a somatória de expectativas que criam sobre a gente. Nossa aparência, nosso comportamento, nossos gostos e nossos sonhos: todos duramente vinculados. Estamos tão imersos nesse cistema, que muitas vezes acreditamos piamente se tratarem de nossos próprios desejos. Mas o que realmente fazemos por nós mesmas e o que fazemos pelo outro? Quanto de nós temos em nós mesmas e quanto nos moldamos para satisfazer o outro?

Depois de mais de duas décadas presa num armário, incapaz de dizer não para as expectativas que criaram sobre mim, estou aos poucos aprendendo a rejeitá-las. É um exercício diário. Árduo. Afinal, dizer sim é fácil. Traz aceitação, carinho, respeito e mais um monte de confortos externos. Mas o que sobra dentro da gente? Os cacos de um ser que foi quebrado e mal remendado por um número incontável de vezes.Tudo numa incansável busca por afeto e reconhecimento. Um cantinho gostoso que só existia no meu imaginário, pois quanto mais me moldava, menos confortável ficava comigo mesma.

Um paradoxo que só pôde começar a ser resolvido com o primeiro não. Não, eu não sou e nunca fui um homem. Vocês que acreditaram numa ilusão induzida por uma falsa bijeção entre genitália e gênero, e para sobreviver, precisei me adequar à terrível fantasia que vocês criaram. Mas aquilo que vocês viam e interagiam nunca fui eu, apenas um invólucro disforme moldado por suas expectativas. Vocês viam o que queriam ver. Um Frankenstein de seus desejos projetados sobre mim. Um ser frustrado e desesperado por qualquer forma de carinho. Um carinho condicional. Afinal, para a diferença é fácil dizer não. Ela é assustadora e ameaça o paradigma. Deve ser eliminada antes que cresça e corrompa o cistema.

Só que é fácil cair na armadilha de trocar um conjunto de expectativas por outro. O que a sociedade espera de uma mulher? Com o que ela deve se parecer? Como ela deve se vestir? Como ela deve se portar? O que preciso fazer para ser lida como mulher? Soma-se a isso a pressão para ser aceita por uma nova comunidade. Será que sou realmente trans o suficiente? O que devo fazer para ser reconhecida e aceita? Hormônios, cirurgias e mais um monte de condições que devemos satisfazer. Saí de uma prisão para entrar em outra? Ao menos essa me parece menos desconfortável.

É uma busca infindável descobrir quem de fato somos. Quais são nossos desejos genuínos e quais são apenas expectativas externas projetadas sobre nossas inseguranças? Cada dia, uma nova descoberta, uma nova percepção. Um outro caquinho nosso remanescente desse processo de massificação que encontramos. Reconstrução e ressignificação. Hoje está mais que claro que preciso da hormonização para poder existir. Ela reduziu minhas disforias e ajudou a alinhar meu corpo com a minha cabeça. As que restaram ainda estão um tanto quanto emaranhadas com pressões externas. A bênção e a maldição que é ser uma mulher de peito pequeno e pênis. Incertezas que preciso reduzir antes de me sujeitar à faca. E se optar por dizer não para as cirurgias, também está bem. Isso não me invalida como mulher.

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Written by Gabrielle Weber

Somente uma mulher trans se aventurando pelas famigeradas terras do estrogênio, enquanto tenta fazer ciência e educar. Artes marcias, café, música e RPG.

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