As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Vigésima Semana

Gabrielle Weber
3 min readFeb 20, 2021

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Hiato

Acho que cheguei em um momento estranho da minha transição. A garganta coça para denominá-lo pós-transição. Mas não é como se minha transição tivesse terminado. De fato, sequer sei definir seu fim, quanto mais dizer que cheguei lá. Claro, há algumas garotas que consideram alguns marcos, como cirurgias, principalmente a de readequação genital, como um sinal de que sua transição acabou, de que enfim estão alinhadas com seu corpo. Plenas. Porém, eu nem sei se quero fazer essa cirurgia. Onde me encaixo então? Será que minha transição terá um fim? Ou se estenderá indefinidamente como um limite que só converge no infinito temporal?

Talvez seja então melhor entender essa inquietude como um limbo. Afinal, parece que me encontro em um hiato, entre caminhos. Paralisada em uma encruzilhada defronte a uma miríade de opções. Mesmerizada e incapaz de decidir como prosseguir. Tomar decisões nunca foi meu forte. Ainda mais quando se trata de coisas que afetarão profundamente a minha vida. Contudo, enquanto espero, parece que o meu passado cisma em retornar.

Sabe aqueles velhos hábitos que o nome morto tinha, mas que julgava enterrados com a transição? Aqueles mesmos que eram usados para erguer muralhas intransponíveis e lhe proteger das frustrações de uma vida vivida pela metade. Eles voltaram da morte. E como uma segunda natureza, nunca esquecida, dominaram-me com a mesma violência de antes. Claro, a situação de exceção em que nos encontramos não ajuda em nada. Isoladas em nossos lares. Nossas vidas em uma espera indefinida. Ansiedades e medos a mil! Mas e o temor de estar regredindo? Do nome morto retornar das trevas? Não bastava ter deixado de avançar com a minha transição.

Por outro lado, seria muita ingenuidade minha acreditar que esses velhos hábitos simplesmente deixassem de existir. O que aconteceu foi simples. A felicidade de começar a viver minha vida verdadeiramente os tornou momentaneamente desnecessários. Como se tivessem sido submergidos por um mar de pequenas alegrias, porém bastou que a seca viesse para que ressurgissem das profundezas. E sua volta foi confundida com a do finado.

O ódio e o desdém que me afastavam das coisas que me machucavam eram os mesmos que me impediam de experimentar coisas novas, de me descobrir e enfim crescer. E para algo me machucar não precisava muito. Bastava não ser boa o suficiente naquilo, ou não conseguir saborear da mesma satisfação que as pessoas ao meu redor. Isolada nas minhas extravagâncias. Uma pessoa diferenciada pelas suas peculiaridades. Mas que no fundo não passava de uma infeliz invejosa, sedenta por um pingo de felicidade em sua vida miserável.

Do que me privei nesse frenesi de autopreservação? O que postulei como ruim, imprestável ou execrável apenas para não lidar com minhas próprias limitações? Uma busca incessante por ser uma pessoa perfeita, mas que me tornou esse ser nefasto. Eu não preciso ser excelente em tudo! Eu não preciso gostar de tudo! Mas eu também não preciso odiar aquilo que não gosto ou não sou boa ou não me é permitido. Preciso mesmo é de uma existência mais leve, sem oscilar incessantemente entre os extremos do ódio e do amor. Não é tudo ou nada. Eu não sou sith.

Há ainda muito o que preciso entender sobre mim mesma. Talvez esse hiato me permita a introspecção necessária para desemaranhar os ódios inventados e perceber que não passavam de desejos frustrados. Não sei para onde vou. Não sei nem quem eu quero me tornar. Mas talvez essa incerteza seja a graça da nossa existência. Estar aberta às possibilidades e não me fechar a novas experiências por simples medo de me frustrar. Não é sobre o destino, mas sim sobre o caminho. Eu não estou parada, estou amadurecendo.

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Gabrielle Weber
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Written by Gabrielle Weber

Somente uma mulher trans se aventurando pelas famigeradas terras do estrogênio, enquanto tenta fazer ciência e educar. Artes marcias, café, música e RPG.

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