As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Ducentésima Décima Quarta Semana
Não entre em pânico
Nunca fiquei tanto tempo sem escrever por aqui. Dezesseis semanas se passaram desde o meu último texto. Por outro lado, não há precedentes para o quanto a minha vida mudou nesses últimos meses. Definitivamente, não faltaram acontecimentos, reflexões e conclusões para preencher linhas e mais linhas desta interminável narrativa. De fato, não sei bem o por quê não consegui sentar e escrever. Claro, foi tudo muito intenso: cirurgia, recuperação, que, diga-se de passagem, ainda não terminou, consultas médicas, reuniões, comissões, viagens a trabalho, pesquisa, seminários, leituras, gravações, capítulo de livro e muito mais. Mas, tempo, apesar de sua constante escassez, sempre era encontrado, em geral, no começo da tarde de domingo, para me dedicar a essas páginas.
Talvez, tenha sido um misto de plenitude com maravilhamento. Estar, pela primeira vez em quase quatro décadas, realmente relaxada na minha pele tirou toda a urgência de colocar meus sentimentos, descontentamentos e anseios para fora. Precisava curtir o meu momento. Precisava me conectar com o corpo que gradativamente emerge de seu casulo final. Sentir os choques dos nervos se reconectando e liberando novas formas de prazer. Aprender coisas básicas como fazer xixi ou colocar um absorvente, fazer uma ducha e dilatar. E como essa última tem tomado o meu tempo, quase quatro horas diárias nessa função. Não reclamo, afinal, sabia no que estava me metendo, mas, sinceramente, não vejo a hora de diminuir essa carga.
Por mais que tivesse pesquisado, lido artigos e relatos e conversado com outras meninas que operaram, hoje, posso dizer que não estava preparada para a brutalidade que foi a cirurgia e tem sido a recuperação. De fato, posso afirmar com total segurança, nada lhe prepara. Isso porque não tive nenhuma complicação ou contratempo. Foi tudo surpreendentemente suave. Mas, mesmo assim, brutal! Nessas horas, escolher um bom cirurgião e ter uma ótima rede de apoio faz toda a diferença. Não estaria aqui sem algumas pessoas que seguraram a minha mão ao longo dessa longa e derradeira jornada. Minha eterna gratidão a elas.
Contudo, não apenas as dificuldades foram subestimadas. Realmente, não tinha ideia de como a cirurgia mudaria a minha vida para melhor, mesmo ainda estando tão investida na recuperação. Não tinha noção de como a disforia genital drenava a minha energia e a vontade de viver. De como ela distorcia a percepção que tinha de mim mesma. Passei até a me enxergar diferente no espelho. Estou mais bonita. Estou mais livre, mais leve e mais solta. Toda aquela carga mental do aquendar e do desconforto de uma anatomia dissidente não é mais necessária. Posso me dedicar a simplesmente ser. Como sair de casa sem essa preocupação me permite estar mais presente e aproveitar muito melhor a vida!
Estava tão inebriada com existir e tão focada na minha recuperação que todo o resto se tornou secundário. Sabia que a cirurgia seria um ponto de inflexão na minha transição. Com quatro anos de hormonização, sabia, também, que estava prestes a atingir o regime estacionário. Com isso, esperava não ter mais sobre o que dissertar aqui. Só, de novo, não esperava não ter sentido a necessidade de narrar sobre as descobertas que a nova anatomia trouxe. Por mais que tenha compartilhado a minha intimidade quase sem pudores ao longo desses quatro últimos anos, essa foi uma linha que não me senti à vontade em cruzar. Algumas coisas permanecerão somente minhas. Não sei quando voltarei a escrever por aqui, se é que voltarei. Só sei que não me sinto confortável em dizer adeus. Por isso, até logo e obrigada pelos peixes!