As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Nonagésima Nona Semana

Gabrielle Weber
3 min readSep 26, 2020

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Disforia

Disforia: uma palavra carregada de significados e estigmas. Muitas vezes assustadora por si só. Mas que traduz fidedignamente a sensação de despertencimento que o meu corpo diversas vezes me causa. Claro, com quase dois anos de terapia hormonal e muito apoio psicológico, acredito ter domado, mesmo que parcialmente, essa quimera de tantos pesadelos. Fato era, que até essa semana, ela estava dormente. Talvez pelo maior período que consigo me lembrar.

Resultado de algum processo que não entendemos bem em nosso desenvolvimento embriológico, o cérebro de algumas pessoas se diferencia para um dos gêneros enquanto que o resto do corpo para outro. As múltiplas consequências dessa dissonância dão origem ao desconforto que chamamos de disforia. Não gosto da descrição, muitas vezes dada em textos médicos, de se tratar de algo extremo e persistente. Pelo contrário, a disforia pode se apresentar de forma deveras sutil e intermitente. Assim, não é raro nos darmos conta de sua presença apenas quando nos é apresentada a sua contraparte feliz: a euforia de gênero. Por outro lado, é muito cômodo ignorá-la, pois sabemos que em algum momento a crise disfórica passa e podemos retomar com a nossa vida normal.

Claro, com os anos essas crises começaram a ficar mais frequentes e mais fortes, até que ficou impossível ignorá-la. Para meu azar ou sorte, isso só aconteceu depois de ter alcançado uma certa estabilidade na vida que me permitiu mandar a cisgeneridade ao seu lugar de direito: às favas! Não foi um processo fácil. Muito pelo contrário, todas as incertezas do tratamento hormonal catalisadas pelo ódio que a sociedade cisnormativa nutre contra a gente tornaram esse comecinho da caminhada rumo à verdadeira Gabi desesperador.

Infelizmente, erra quem acha que a própria comunidade trans é imune a esses padrões cisnormativos. Muito do combustível a tornar a minha disforia, principalmente a genital, ardente veio de minhas parceiras de caminhada. Tanto ouvi que não seria uma mulher trans de verdade se não odiasse a minha genitália, que passei a odiá-la. E uma dor que não estava lá se tornou presente. Aterradora. Desesperadora. Não nego, cheguei a fazer planos detalhados para uma futura cirurgia. Por sorte, diversos fatores me impediram de tomar uma decisão precipitada e nesse ínterim conheci a diversidade que me faltava. Afinal, há muitas mulheres trans e travestis que não só estão de boas com seu pênis, como o adoram.

Mas os detalhes dessa história de autoaceitação ficam para outro texto. Digredi demais. Voltemos a crise disfórica mais recente. Ela foi bem menos intensa. Contudo, serviu para me lembrar que a disforia está sempre à espreita. Basta ver alguma coisa que me dê gatilho, no caso, uma amiga falando sobre como era bom não ter nenhum pelo nos braços, para atiçar a besta. Piorou muito o fato de eu não estar nem um pouco preparada. A vida parecia estar tomando os seus devidos rumos. Eu estava tão feliz. Meu corpo parecia alinhado. Inebriava-me diariamente com o crescimento das minhas tetinhas. Melhor sensação do universo conhecido. Ingenuamente, imaginei que isso me conferiria uma certa imunidade à disforia. Não podia estar mais errada. Desabei num choro inconsolável.

Os pelos de meus braços, que sabia já terem diminuído drasticamente de densidade, abruptamente cresceram, multiplicaram-se e tomaram todo o meu corpo. Tudo o que eu conseguia ver eram pelos. Meu corpo coberto por pelos. Uma monstruosidade. Nojo. Vontade de arrancar tudo. Mas não seria uma solução definitiva. Choro. Vontade de morrer. Um turbilhão de pensamentos negativos. A disforia distorce tudo. O desespero torna a necessidade de tomar alguma atitude urgente. Resisti. Agarrei-me na razão e na percepção de outrora. Deixei que ela me tomasse, mas não permiti que ela me levasse. Como uma chuva de verão, veio violenta, mas logo passou. Recolhi os cacos. Aninhei-me no ombro da esposa que repetia incessantemente que eu era linda. Eu sou linda, não posso me esquecer disso.

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Gabrielle Weber
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Written by Gabrielle Weber

Somente uma mulher trans se aventurando pelas famigeradas terras do estrogênio, enquanto tenta fazer ciência e educar. Artes marcias, café, música e RPG.

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