As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Nonagésima Quarta Semana

Gabrielle Weber
3 min readAug 22, 2020

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Escolhas

Não sei se devido à minha criação ou a alguma inclinação pessoal, eu tenho uma dificuldade colossal em lidar com decisões e suas consequências. E não apenas as escolhas que de antemão sabemos que terão grandes repercussões ao longo da nossa vida. Lembro-me das minhas indecisões de criança, extremamente relevantes, sobre qual brinquedo comprar com o parco dinheiro que ganhara de aniversário ou alguma outra data comemorativa. Talvez o que melhor aprendi nessas circunstâncias foi a procrastinar. Esperar até o momento em que sobrasse apenas uma possibilidade ou que fosse literalmente obrigada a me decidir. Não que esses momentos de antecipação fossem gostosos. Muito pelo contrário, era tomada pelo terrível par: agonia e ansiedade.

Em diversos aspectos, não mudei muito desde então. Talvez a única decisão fácil na minha vida tenha sido a escolha da carreira: física. Uma que apesar dos percalços e das diversas mudanças locais de rumo sempre me foi óbvia. O acaso me levou, interessantemente, a uma área onde estudo sistemas tão vinculados que as trajetórias são univocamente determinadas e dependem continuamente das condições iniciais e de contorno. Um alívio para alguém que não sabe e, muitas vezes, não quer decidir.

Contudo, o normal é me descabelar analisando e reanalisando todas as infinitas possibilidades e suas repercussões. Perdida num mar de incertezas é fácil se desesperar, e por mais que tente me calcar em alguma lógica para me decidir, a impressão que fica é que no final tomo a decisão por algum impulso momentâneo. O alívio de ter feito a escolha é rapidamente ofuscado pelos infinitos e se eu tivesse feito tomado algum dos outros caminhos. Sobram-me apenas as faltas e os vazios, já que paulatinamente ignoro as conquistas e suas pequenas felicidades. Nisso esvai-me o momento. Vivo presa num passado de possibilidades irrealizáveis, enquanto o presente se esvai por entre meus dedos.

Naturalmente, não poderia ter sido diferente com a minha transição: uma decisão que procrastinei por mais de duas décadas. Um período recheado de terríveis agonias e ansiedades. Por diversas vezes, estive a um infinitésimo de sair do armário. Apenas o medo paralisante do abandono e a vã esperança de que as coisas se resolvessem por si só a me segurar. Perdi as contas de quantas vezes sonhei que algo magicamente me forçasse a transicionar: desde os efeitos colaterais do remédio para espinhas até algum acidente ou câncer. Mas não, o ônus dessa decisão cabia a mim. Somente a mim. E para piorar, as contas das infinitas probabilidades sempre me mostravam um resultado tenebroso.

Não havia luz no final do túnel. Precisei do desespero ocasionado pelos derradeiros sinais do colapso irreversível da estrutura, para me tirar da zona de desconforto. Mais uma vez, uma decisão muito pensada e estudada, mas tomada no impulso. Não me arrependo nem um pouco de ter transicionado. Salvou a minha vida. Contudo, mesmo depois de mais de 2 anos nessa jornada, ainda sou constantemente assolada pela dúvida: e se eu tivesse transicionado mais cedo? Será que os resultados seriam melhores? Será que eu teria aproveitado melhor minha juventude? Vivido mais o presente em vez de me preparar para o futuro? Talvez. Mas também poderia ter terminado meus dias numa sarjeta antes dos 35 anos.

Não há como saber. É um exercício fútil mergulhar novamente nesse mar de impossibilidades. Deveria me ater mais ao que conquistei. Afinal, transicionar mais tarde pode ter me roubado algumas curvas e algumas experiências, porém certamente me deu muita segurança, resiliência e uma perspectiva única da vida. Deveria, em vez de me perder nas brumas de um passado que não foi, aproveitar o presente: as curvas que vieram, o sorriso que conquistei, as pessoas que me cercam de amor e compreensão. Mas não, se não estou divagando sobre um passado que não foi, ocupo-me com as possibilidades de um futuro que ainda não chegou. Parece que a única constante do movimento na minha vida é a falta.

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Gabrielle Weber
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Written by Gabrielle Weber

Somente uma mulher trans se aventurando pelas famigeradas terras do estrogênio, enquanto tenta fazer ciência e educar. Artes marcias, café, música e RPG.

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