As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Nonagésima Sétima Semana

Gabrielle Weber
4 min readSep 12, 2020

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Um Brinde à Ciência!

Aviso de gatilho: o texto a seguir aborda questões relativas ao suicídio!

É um pleonasmo dizer que a ciência salva vidas. A revolução que a medicina viu nos últimos cem anos fruto das descobertas da biologia, da química e até da física não permitem outra conclusão. Talvez, ainda possa lhe parecer um tanto quanto estranha a afirmação de que a divulgação científica também assume um importante papel nessa nobre missão. Contudo, nessa era de fake news, torna-se cada vez mais fundamental o seu papel na elucidação das farsas que astrologia, a homeopatia, o terraplanismo e todo o fundamentalismo religioso insistem em propagar. Mas, apesar, da importância dessa cruzada contra o obscurantismo que nos ameaça com uma segunda e iminente idade das trevas, o causo que quero contar é outro. Um muito mais pessoal: de como o Pint of Science sem querer salvou a minha vida.

Precisamos voltar para os idos de 2017. Minha vida parecia estar enfim tomando rumo. Não deveria ter motivos para reclamar de nada. Estava empregada na maior universidade do país, minha pesquisa finalmente começara a deslanchar, fizera bons amigos na terra incógnita que viera morar e estava casada com a mulher mais maravilhosa deste universo. Foi nesse contexto de calmaria antes da tempestade que surgiu o convite para participar da organização do Pint of Science pelas minhas bandas no ano seguinte. Eu já era uma entusiasta da divulgação científica e mergulhei nesse projeto sem ter a menor ideia de quão importante ele seria em um futuro tão próximo.

Quem cresce com disforia de gênero sabe que é um processo cíclico e recorrente. A crueldade maior é que nunca sabemos quando ela vai atacar. São pequenos detalhes, muitas vezes imperceptíveis a olhos cis, que disparam uma crise. A insuportável companheira de mais de duas décadas estava há muito estranhamente dormente. Talvez, a excitação aliada à sobrecarga de trabalho advinda do emprego novo repleto de metas e desafios tenham tido um papel muito menos trivial nesse hiato. Certo é, que foi nas férias do final de 2017, quando bateu a sensação de alívio e dever cumprido em relação às minhas cobranças profissionais, que ela reapareceu. Violenta. Afinal, tinham sido pelo menos 4 anos de um alívio impensado.

Recordo-me vividamente do terror ao perceber a iminência da careca. Cabelo comprido sempre foi algo importante da minha vida. Desde a mais tenra infância, exercia uma tremenda fascinação. Talvez, o maior símbolo de feminilidade. Uma árdua conquista do começo da adolescência que carregava com muito carinho. O desespero ao ver as entradas colossais e a baixa densidade por toda a cabeça. Era me impensado ser uma mulher careca. Preferia morrer a isso. O meu tempo estava acabando. As areias do tempo substituídas pelos fios que insistiam em cair.

A cada dia que passava, mais distante eu ficava da mulher que existia dentro de mim. O desespero deixou de ser apenas latente. As pessoas ao meu redor começavam a perceber que algo estava errado comigo. Apesar das inúmeras perguntas e ofertas de amparo, coragem nula para me abrir. Perderia tudo: emprego, esposa, família e amigues. Mas a pesada máscara que me forçara a carregar por tantos anos começou a ruir. Era um processo irreversível. Os vislumbres dela, ou melhor de mim mesma, no espelho eram cada vez mais constantes. Os sonhos, cada vez mais vívidos, meio que se misturavam com a realidade. Estava pirando ou apenas espiralando em um desespero sem fim?

Não dava para viver assim. Mas também me faltava a coragem para procurar ajuda. Covarde. Precisava fugir. Fugir de mim mesma, porque os demônios estavam em mim. Excitados e rebeldes, recusavam-se a se calar. Ideações suicidas. E se eu deixar que um caminhão na contramão leve a minha vida? Problemas resolvidos. Mas ele insistia em não aparecer. Até que certa manhã, no caminho para o trabalho, o Paraíba me chamou e quase afundei meu carro em suas águas. Não sei o que me impediu. Talvez apenas o acaso estivesse ao meu lado.

Acaso esse, que por outros caminhos obscuros, permitiu que estivesse no mesmo bar abarrotado no segundo dia do Pint of Science que a Luiza. Fiquei mesmerizada ao ouví-la dissertar sobre a misoginia no Brasil, enquanto narrava a sua própria história. Mulher trans que apesar de toda a transfobia conseguiu florescer e brilhar. Se ela conseguiu, por que eu não conseguiria? Estava em êxtase! Doida para perguntar e saber mais sobre a sua trajetória. Mas a vergonha só me permitiu perguntar sobre como foi lidar com a perda de privilégios. Uma lição de vida.

Voltei para casa renovada. Tão cheia de vontade de viver que mal dormi nas semanas que se seguiram. Passava as madrugadas navegando pelos fóruns trans na busca pelas obscuras informações de como transicionar de gênero no Brasil. As perguntas ainda me assolavam. Era isso mesmo o que eu queria para a minha vida? Estava disposta a arriscar tudo por um sonho incerto? Afinal, que garantia teria de que me tornaria a mulher que vislumbrava no espelho? As respostas eram um tímido, porém cada vez mais certo, sim. Ora, se nada desse certo, o Paraíba ainda estaria lá para me abraçar em suas águas.

O salto de confiança não demorou a ser dado. Duas semanas depois do evento que salvou a minha vida, estava eu revelando a minha essência para a minha esposa. Tomada pelo medo, mas motivada por uma incomensurável esperança de começar enfim a viver. O resultado dessa conversa, vocês, que me acompanham pelas internets dessa infindável quarentena, já sabem. Celebremos, pois a ciência e a sua divulgação! Devo minha vida e felicidade a elas!

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Gabrielle Weber
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Written by Gabrielle Weber

Somente uma mulher trans se aventurando pelas famigeradas terras do estrogênio, enquanto tenta fazer ciência e educar. Artes marcias, café, música e RPG.

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