As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Octagésima Nona Semana

O pseudorgulho da difamação
Dia desses, estava passeando pelo twitter e me deparei com a seguinte frase:
“Uma mulher sem pau é como um anjo sem asas.”
Definitivamente, não é a primeira vez que leio essa ou alguma comparação similar. Contudo, em todas as anteriores, tal afirmação partia de um homem, mais precisamente, de um travequerio. Por isso, talvez, nunca tenha me incomodado. Afinal, quem se importa com a opinião de seres desprezíveis como esses, cuja única motivação é objetificar os nossos corpos? Só que dessa vez, a frase estava estampada numa camiseta vestida por outra mulher trans. Isso, sim, machucou-me mais profundamente do que percebi no momento. Foi um incômodo instantâneo que, sem o devido cuidado, cresceu. Virou raiva, asco e, agora, motiva-me a escrever sobre todo o turbilhão de sensações desconfortáveis que me despertou.
O acaso quis-me uma mulher de peito e pau. Nunca foi uma relação simples, raramente confortável. Esse, quiçá, seja um dos poucos pontos de concordância em toda a comunidade transfeminina. Pudera, basta pensar a ruptura que nossa singela imagem causa nas fundações do cistema. Sem contar todo o fetiche que desperta nos homens. Esse, muitas vezes, seguido do nojo, do ódio e da violência. Sofremos por isso e com isso. Temos medo do que pode nos acometer, caso descubram tamanha dissidência entre as nossas pernas.
Ao longo da minha vida, essa relação mudou muito. Começou com o fugaz incômodo de uma incongruência inexplicável na infância. Passou por uma disforia absurda com as primeiras ereções. Acalmou-se com o começo da transição. A animação e a esperança desse período foram tamanhas, que cheguei a considerar que o problema estava resolvido, ou que se resolveria sozinho. Claro, não podia ter estado mais errada. Era apenas o meu cérebro tentando não encarar de frente uma das questões que mais me aterrorizava: a cirurgia. Fugi enquanto pude e, quando me vi encurralada, tentei desesperadamente fazer as pazes com o meu pênis. Procurei por orgulho, por aceitação, por redenção, mas tudo o que encontrava nos grupos de apoio, eram outras meninas afirmando categoricamente que jamais seria trans o suficiente, se não desejasse a cirurgia ou odiasse a minha genitália. O medo de operar era maior do que a disforia. Sentia-me sozinha, desamparada. Não era trans o suficiente.
Foram quatro anos de jornada para desacreditar esse medo. Para entender que, de fato, eu desejava ter uma vagina. Não foi uma tarefa nada fácil, ainda mais porque, quando eu parei de procurar, encontrei as meninas do outro lado: aquelas que julgavam travestis apenas as não-operadas. Às operadas era relegado a asquerosa alcunha de transexual. Algo que eu jamais fui e nunca serei. Minha cabeça estava confusa. Negavam-me o direito de ser eu mesma, apenas por não querer manter a genitália da qual tanto se orgulhavam. Seu argumento: por que remover o que lhe faz especial? Exatamente, o teor da frase estampada no peito da menina. Não à toa, trouxe-me um turbilhão de dúvidas e desconfortos.
É nesse ponto que eu queria chegar. Por ser trans, esperava um pouco mais de empatia dessa menina. Esperava que ela entendesse as dúvidas e as incertezas que nos acometem com relação ao nosso corpo. Esperava que ela respeitasse as batalhas que travamos, seja para aceitar que temos um pênis, ou de que precisamos da cirurgia. Quando ela afirma que uma mulher sem pau é um anjo sem asas, ataca a mulheridade de todas as mulheres e, em especial, das mulheres trans que desejam operar. Ela questiona a nossa decisão, colocando-nos como mulheres trans de segunda categoria. Indignas. Aquelas que falharam em se orgulhar de si mesmas. Depois de todos esses anos me questionando até chegar na minha decisão, isso me machuca muito. Por que não mostrar que se orgulha de si, sem para tanto precisar difamar o corpo alheio? Cada uma de nós tem o seu tempo e o seu processo. Não custa nada ser gentil!