As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Octogésima Nona Semana

Gabrielle Weber
3 min readJul 18, 2020

Quando você se descobriu cis?

O privilégio cis é um dos pilares que fundamenta a nossa sociedade ocidental. Ele parte da premissa de que apenas os gêneros cis são legítimos. Em contraponto, baseado em outro dos conceitos que sustentam o nosso modo de viver: o sexismo oposicional, estão os gêneros trans que, por isso, devem ser falsos ou, na melhor das hipóteses, não naturais. Esses não passam de uma mera imitação de segunda categoria que nunca atingirão o esplendor do gênero inato. O privilégio cis é onipresente, assim como os diversos mecanismos de opressão que mantêm a sua pseudohegemonia.

A passabilidade é uma das armas mais sutis e cruéis da tirania cis. Primeiro, porque se trata de um subterfúgio da cisnormatividade para não assumir o seu papel ativo na discriminação das pessoas trans. Ela transfere o ônus da incessante atribuição de papéis de gênero, que baseia toda a nossa interação social, à adequação da performance de gênero de uma pessoa trans com respeito a certos padrões arbitrariamente adotados do que é uma mulher ou um homem. Assim, exime a pessoa cis de sua parte crucial no processo. Não é ela que está julgando outro ser humano com base em seus preconceitos, mas sim, a pessoa trans que está falhando em não os atingir.

O medo das agressões, sejam físicas ou psicológicas, decorrentes do ato de não passar, coloca as pessoas trans em um dilema insolúvel. Se não nos esforçamos para sermos passáveis, merecemos o preconceito e a violência com a qual somos tratadas. Por outro lado, se somos passáveis e, por isso, mesmo que temporariamente nos concedem o famigerado privilégio cis, vivemos na ansiedade de tê-lo sumariamente revogado. Momento, no qual somos simultaneamente acusadas de estarmos tentando enganar ou de reforçar os estereótipos de gênero. De toda forma, sempre perdemos.

Não bastassem os dois pesos e as duas medidas que a passabilidade incute ao tratamento de pessoas cis e trans, ela também serve como forma de apagamento social. Para termos o privilégio cis estendido e com isso levarmos uma vida isomórfica à das demais pessoas do gênero com o qual nos identificamos, somos obrigadas a nos invisibilizar. Posto que, basta revelarmos nosso status trans, para imediatamente perdermos esse privilégio. Somos, a partir desse instante, violentadas com uma série de perguntas ou afirmações extremamente invasivas, objetificadoras e humilhantes. Desde a reveladora “mas você nem parece trans”, que denuncia sutilmente o desconhecimento e o preconceito que existem sobre pessoas trans, até a explícita constatação do privilégio cis sumarizada na “mas quando você se descobriu trans?”

Ninguém faz a pergunta recíproca: quando você se descobriu cis? Essa assimetria não é despropositada. Ela serve ao único propósito de quebrar a simetria que originalmente existia entre gêneros cis e trans para fundamentar a pretensa normalidade da cisgeneridade e, em contraponto, a anormalidade da transgeneridade. Normalizar tal questionamento é perigoso, porque invariavelmente vai demonstrar a imaterialidade do privilégio cis e de como ele foi construído sobre falsas premissas. E sejamos francos, ninguém em sã consciência quer perder seus privilégios.

Claro é muito mais natural que pessoas trans questionem seu gênero do que pessoas cis. Não há incentivo maior do que a dor ocasionada pelas diversas dissonâncias que somos acometidas conforme crescemos. Se tem uma coisa que podemos tomar como certa é que conforto não fomenta dúvidas. Afinal, a maioria das pessoas cis que espontaneamente questionam seu gênero o fazem porque de alguma forma transgridem as expectativas de gênero impostas pela nossa sociedade. Seja na forma de se vestir, portar-se ou por ter gostos associados ao outro gênero. Seja por fugir da heteronormatividade. Lembre-se, o sexismo oposicional também pressupõe uma bijeção entre gênero e sexualidade. Mas como então proporcionar que mais pessoas confrontem sua essência e com isso normalizem a não-trivialidade em ser cis?

Também não podemos esperar que todo mundo tenha alguém trans próximo o suficiente para acompanhar, mesmo que parcialmente, a sua transição e, com isso, sejam levados a se perguntar sobre a veracidade da hipótese cis. O motivo é simples, as estimativas apontam que pessoas trans constituem cerca de 0,2% da população. A estatística não está ao nosso lado. Resta-nos, pois, a cruel alternativa de romper com o véu da passabilidade. Afinal, apenas ao trivializarmos a existência trans, podemos mostrar o quão central tal questionamento é. E você pessoa cis, quando se descobriu cis?

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Written by Gabrielle Weber

Somente uma mulher trans se aventurando pelas famigeradas terras do estrogênio, enquanto tenta fazer ciência e educar. Artes marcias, café, música e RPG.

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