As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Octogésima Oitava Semana
Esperar
Não raro, antes de me deitar, eu me pego sentada na borda da cama olhando para as minhas pernas semi desnudas. O jogo de luzes e sombras promovido pela fraca luz da luminária a me entreter. Viajo sem sair do lugar. Perdida nos mais diversos devaneios de como a minha vida poderia ter sido, se certas condições de contorno fossem diferentes. Apenas o Cthulhu a me trazer de volta para realidade. Os pelos resistentes a me lembrar do meu passado.
As vezes dá vontade de esquecer, outras de apagar tudo e começar do zero. Sinto falta de experiências que não tive. Muitas delas perdidas na infinita espera que foi a minha vida até dois anos atrás. Por que nunca perceberam que eu sofria? Por que nunca me perguntaram se estava tudo bem? Por que nunca me deram a oportunidade de ser genuinamente eu? Enfim, por que nunca me acolheram? Muito pelo contrário, sempre que podiam reforçavam todos os esteriótipos mais tóxicos de uma masculinidade que eu insistia em não exibir. Lá em meu âmago, uma feminilidade latente insistia em sobreviver.
Queria gritar, mas tinha medo. Medo de decepcioná-los. Medo de ser abandonada. Medo de meus sonhos desabarem de vez. Melhor ficar nesse estado de expectativa suspensa em que tudo pode ser. Essa sobreposição de destinos não colapsada permitia a esperança de um futuro melhor. Mas nesse purgatório me esvaíram os anos e a juventude se foi. Perdi a oportunidade de crescer como a menina que sempre fui e aproveitar dessa liberdade para experimentar. Flertar com a minha sexualidade. Conhecer novos horizontes. Maravilhar-me com as descobertas de uma adolescência plena. Contudo, estava presa. Vinculada por uma vergonha extrema de ser quem eu era. Nunca me abri ao mundo. Minha vida se resumia a uma eterna preparação para o dia que nunca chegava.
Fato é que não sei se faria as coisas diferentes. Muito do que hoje sou é devido a esses anos de amargura. Contudo, sonhar não faz mal e numa noite dessas o meu subconsciente me presenteou com um gostinho de uma dessas realidades alternativas. Devia estar com dez ou onze anos. Tínhamos acabado de mudar de país em função do emprego do meu pai. E junto com a mudança veio a oportunidade perfeita para a minha transição. Ir para um lugar onde sempre seria vista como eu mesma. O nome morto completamente relegado as brumas de um passado que nunca deveria ter existido. Já tomava os bloqueadores de puberdade e esperava pela idade para começar com os hormônios. Enquanto isso vivia feliz e entretida com a realidade de uma garota pré adolescente. Era amada pelos meus pais. Tinha amigas com as quais me reunia para dançar, pintar as unhas e conversar sobre as primeiras paixonites.
Acordei justamente quando me preparava para participar de uma festa do pijama. Passei o resto do dia aérea, com um ar de felicidade boba. Engraçado, se tivesse tido esse sonho há poucos meses, certamente teria acordado aos prantos. Triste com o choque do que minha vida poderia ter sido, se tivessem me escutado. Mas não. Dessa vez, parece que o sonho me fortaleceu. E com a ajuda da terapeuta pude perceber que aos poucos estou me desapegando desse passado hipotético. Não há nada errado em sonhar, mas não posso mais desperdiçar a minha vida perdida em um mar de possibilidades irreais. A felicidade está no agora. Por que continuar esperando?