As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Octogésima Primeira Semana

Gabrielle Weber
4 min readMay 23, 2020

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Adolescência de Verdade

Definitivamente, as pessoas cis acham estranho, quando comento que estou passando por uma segunda e derradeira adolescência. Como isso é possível, se já passei dos trinta? Talvez, eles vivam sob a impressão de que a transição se resume a tomar uma pílula mágica, que nos transforma da noite para o dia nas mulheres de nossos sonhos. Quem me dera? Seria tudo tão mais fácil! Mas a verdade é que se trata de um processo longo. Quase isomorfo à adolescência cis. Ficam ainda mais chocados, quando falo que as mudanças não se resumem às físicas. As emocionais são tão ou mais importantes. Sinto como se estivesse não apenas redescobrindo o meu corpo conforme ele vagarosamente se transforma em sua configuração final, mas principalmente descobrindo quem sou. Experimentando uma miríade de coisas pela primeira vez.

É fácil falar sobre as mudanças físicas. Não à toa, a internet está repleta de relatos dessas transformações mirabolantes. Parecem até estórias vindas diretamente dos contos de fada. Fascinam aos cis, quase como um fetiche. Isso porque, além de óbvias aos olhos, elas narram uma história de superação que não requer envolvimento emocional. É uma vitória fácil, ainda mais porque apenas as narrativas das garotas extremamente passáveis são divulgadas. Contudo, uma transição envolve muito mais do que crescer um par de peitos e uma bunda. Não que isso seja ruim. Muito pelo contrário, é maravilhoso. Mesmo com todas as dores envolvidas no processo. Mas, pelo menos para mim, isso é apenas mais uma das partes que torna essa jornada maravilhosa.

Costumo falar que a minha transição começou com o grito: Transição ou morte! Não se tratava apenas de um forte brado por liberdade. Era mais como um rompimento irreversível com as amarras do passado. Um vai ou racha. Precisava me livrar dos paradigmas engessados que me moldaram. Cresci em um ambiente em que não me era permitido errar. Faça ou não faça. A tentativa não existe. Se não conseguisse algo na primeira vez, certeza que seria execrada. O resultado, além de não ter aprendido a lidar com o fracasso, nunca arrisquei. Sempre me mantive na minha zona de conforto, onde sabia que conseguiria não apenas realizar a tarefa, mas fazê-la com excelência. Um velado pedido por atenção a pais que estavam mais preocupados com os próprios umbigos. Mas o resultado, era sempre o mesmo. Por mais que me destacasse, era sempre um não fez mais do que a sua obrigação que ouvia. Vivia sempre frustrada independente de quão bem sucedida fosse.

Junte-se a isso tudo o reforço de uma masculinidade extremamente tóxica. Tudo era proibido. Não podia chorar. Não podia dançar. Não podia me vestir, gesticular ou falar livremente. Tinha que ser o robozinho perfeito a comando dos pais. Frio, seco e estoico. Talvez o seu maior medo fosse que me tornasse o menino gay afetado e revoltado. Por outro lado, tudo o que eu queria era que eles se orgulhassem de mim. E entendendo as regras subjazentes a esse joguete de intenções velado, era totalmente complacente. Sofria calada. Tinha medo de sair da linha e ser excomungada. Certa vez isso quase aconteceu. Meu pai descobriu uma de minhas poesias de adolescente gótica ainda no armário. Não sei se foi descuido meu ou intromissão dele. Pouco importa. Perdi meu sábado subsequente ouvindo toda a ladainha cristã vazia num centro espírita qualquer. Se àquela altura da vida já odiava qualquer religião, esse fatídico evento só incendiou o espírito Varg Vikernes em mim.

Explorar meu corpo, aprendi desde cedo ser um dos maiores pecados. Sempre feito na surdina da noite sob o pesado manto da culpa. Era muito mais uma necessidade física a ser rapidamente saciada do que algo genuinamente prazeroso. Não havia nem tempo, nem espaço para descobrir as sutilezas do meu corpo. Aprender a apreciá-lo antes que a testosterona o marcasse irreversivelmente. Não tinha privacidade alguma. Tudo o que eu fazia era meticulosamente observado e julgado. Se não gostassem, certeza que ouviria alguns sermões. Era uma prisão. Também não podia sair de casa sem aprovação. De fato, apenas se me levassem e buscassem de onde quer que me permitissem ir. Controladores. Imagina o pavor que foi sair de casa e enfrentar o transporte público sozinha pela primeira vez na vida já com quase dezoito anos a caminho do meu primeiro dia na faculdade?

Uma adolescência na qual não se pode explorar, errar, chorar e tentar de novo até conseguir não é uma adolescência de verdade. Então quando digo que estou passando por uma não apenas no sentido físico é exatamente a isso que me refiro. Tenho enfim a possibilidade de fazer as coisas que toda menina de dezesseis anos faz corriqueiramente. Com apenas 20 anos de atraso. Mas antes tarde do que nunca. Estou finalmente entrando em contato com minhas emoções e sentimentos. Dando vazão a eles em vez de trancafiá-los indefinidamente em uma caixinha apertada. Aprendendo a lidar com minhas limitações e frustrações sem ter que recorrer a raiva, aos gritos, socos e pontapés. Conhecendo o meu verdadeiro eu que ficou por tanto tempo soterrado nas infinitas correntes que vinculavam seu existir. Descobrindo que sou bonita e digna de amor próprio.

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Gabrielle Weber
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Written by Gabrielle Weber

Somente uma mulher trans se aventurando pelas famigeradas terras do estrogênio, enquanto tenta fazer ciência e educar. Artes marcias, café, música e RPG.

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