As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Octogésima Quarta Semana

Gabrielle Weber
3 min readJun 13, 2020

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Muralha

Lidar com traumas é algo que exige muita maturidade. Como então esperar que uma criança ou adolescente trans consiga se tornar um adulto saudável sem nenhum acolhimento emocional ao longo desses anos formativos? Crescer em um mundo onde tudo é proibido e as frustrações se acumulam exponencialmente faz com que nos isolemos gradativamente de tudo e todos e, consequentemente, de nós mesmas. Cada experiência traumática que vivenciamos fornece um novo tijolo para a muralha que aos poucos erguemos. Acreditamos piamente que seu único propósito é de nos proteger do mundo cruel que insiste em nos odiar e nos matar. Não tarda, contudo, a percebermos, que nesse ímpeto impensado de autopreservação, construímos a nossa própria prisão. Resta uma vida sem cores. Somos incapazes de interagir, de chorar ou de sequer sorrir. Apenas autômatos sem graça colecionando anos vazios.

Dói perceber que desperdicei parte significativa da minha vida nessa prisão sem paredes. Choro, em particular, pela adolescência que se esvaiu entre meus dedos sem que a aproveitasse em sua plenitude. Perdi experiências importantes, porque vivia sob a opressão de um medo paralisante. Um pavor que não me permitia vivenciar novas experiências, arriscar, errar e, enfim, aprender. E se descobrissem quem eu era de verdade? Quais seriam as consequências? Abandono, agressão e morte? Se mal sabia lidar com minhas pequenas frustrações mundanas como encararia tamanha provação? Melhor ficar quietinha no meu canto fingindo ser quem eles queriam que eu fosse.

Chorei lágrimas secas. Gritei em silêncio. Todo um sofrimento velado, na eterna esperança de um acolhimento que nunca viria. No desespero, desejei até que um câncer me livrasse da fonte de meu sofrimento. Confidenciava toda essa angústia ao papel. Apenas ele não me julgava e aceitava de bom grado minhas dores. Infortúnio traduzido em poesia. Não me lembro bem quando ou por que deixei de escrever em português e procurei refúgio na língua de Shakespeare. Talvez um jeito de me proteger de olhares indiscretos ou de acessar cantos da minha alma que já me eram proibidos. Um fetiche. Um subterfúgio. O importante é que assim dava vazão aos meus sentimentos e evitava a concretização de minhas ideações suicidas. Queria morrer, não havia mais sentido em viver com o ódio e repúdio que sentia por mim mesma.

Não sei se foi descuido meu, ou intrometimento alheio. Resta apenas o fato de que uma dessas poesias caiu nas mãos de meu pai. Com o título sugestivo de wrath slave e o teor autodestrutivo da composição, hoje, consigo imaginar o pavor que nele despertou. Contudo, em vez de um abraço apertado e um coração disposto a ouvir sem julgamentos o meu sofrimento, recebi apenas a aridez despida de qualquer forma de amor do doutrinamento religioso. Nessa época, meu pai já sabia de meu ateísmo e julgou que se tratava apenas de um reflexo da falta de deus em minha vida. Arrastou-me à força na primeira oportunidade para um centro espírita. Não perdi apenas uma tarde ensolarada de domingo sendo severamente questionada, humilhada e agredida psicologicamente por pessoas cruéis que em nome de um falso deus pregavam apenas o ódio à diferença, perdi principalmente a esperança de um dia ser ouvida e aceita pelo meu pai.

Ao me arrastar para esse antro de ódio, meu pai sem saber acrescentou diversos tijolos à minha muralha. Não apenas me fechei definitivamente para a minha família, como também perdi mais uma forma de me expressar. Precisei de mais de vinte anos para conseguir voltar a escrever poesia. Entender a profundidade desse e outros inúmeros eventos sob a ótica de uma análise sem o viés de proteger meus pais foi fundamental. Aos poucos, desmantelo esse muro e, de tijolo em tijolo, abro-me mais para o mundo. Com vinte anos de atraso, estou finalmente vivendo a minha adolescência: arriscando, errando e aprendendo. Antes tarde do que nunca.

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Gabrielle Weber
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Written by Gabrielle Weber

Somente uma mulher trans se aventurando pelas famigeradas terras do estrogênio, enquanto tenta fazer ciência e educar. Artes marcias, café, música e RPG.

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