As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Octogésima Segunda Semana

Gabrielle Weber
4 min readMay 30, 2020

--

Transversário

Faz exatamente dois anos da fatídica noite. Parece que foi ontem que chamei a esposa para a derradeira conversa. Estava tremendo, uma combinação de medo com excitação. Finalmente poderia ser eu mesma. Livre de uma prisão sem paredes, autoimposta pela necessidade de sobreviver em uma sociedade que me odiava sem ao menos me conhecer. A verdade que por tanto tempo escondi, negando-a de mim mesma, seria enfim revelada. Não havia outra opção. Era isso ou morrer. Louca ou afogada no rio. Não apenas as crises disfóricas haviam se intensificado exponencialmente, ela também estava cada vez mais presente. Vislumbres no espelho cada vez mais frequentes. Sonhos em que eu era ela (ou ela era eu) emaranhavam-se com a realidade. Indistinguíveis. Não sabia mais o que era real e o que era sonho.

O medo era partilhado. Nosso relacionamento não estava bem. Pudera, já fazia um bom tempo que eu não estava presente. Perdida em meus devaneios. Isolava-me cada vez mais em minha dor, longe de todos ao meu redor. Se eu temia que ela me deixasse, ela, que a expulsasse de casa. A distância que ao longo dos últimos meses crescera e nos afastara ruiu com minha primeira fala. Se a memória não falha, “eu acho que sou uma mulher” foi o que disse. Uma revelação que de tão inesperada explicava a estranheza de meu comportamento mais recente. Um abraço seguido de um ímpeto de curiosidade. Como assim? Explique-se melhor? Choro meu e choro dela. Não sabíamos o que viria pela frente, apenas que precisávamos tentar juntas.

Por outro lado, nem parece que se passaram apenas dois anos desde então. Aconteceu tanta coisa nesse ínterim. Talvez tenha sido o desespero do começo da transição ou a ansiedade para que os hormônios moldassem meu corpo que tenham dilatado o tempo. Era tanta coisa para aprender, para pesquisar, para fazer. Mal sabia por onde começar. Treinamento de voz, roupas, maquiagem, reaprender a andar e a gesticular, hormônios, laser e cirurgias. Um admirável mundo novo se abria perante os meus fascinados olhos. Abasbacada. Parecia perdida em uma encruzilhada, maravilhada por todas essas possibilidades. A vida que deveria ser minha, mais próxima de ser vivida.

O segredo se manteve pelos primeiros meses restrito à segurança de casa. Precisava desse tempo para experimentar. Descobrir quem de fato era. Ora, à época nem nome eu tinha. Sobrevivia às semanas na esperança de poder viver nos finais da semana. Raros momentos em que podia me me despir da minha máscara social, que a cada dia que se passava mais pesada ficava. Um fardo insuportável. O desespero por não encontrar um endocrinologista que aceitasse me prescrever a tão sonhada terapia hormonal só não foi maior, porque consegui com minha dermatologista a receita para duas drogas que retardariam os danos da testosterona ao meu cabelo. Precisava também encontrar uma psicóloga. A ansiedade dessas pequenas saídas do armário era paralisante, ainda mais em um país que fervilhava um crescente ódio à diferença.

Não poderia ter sido mais simbólico que o começo da terapia hormonal se desse exatamente no dia seguinte à eleição do genocida que prometia matar todas as travestis. Cinco meses após minha revelação, era minha esposa quem aplicava o primeiro adesivo carregado de estrogênio. Um compromisso derradeiro comigo mesma. A minha felicidade acima de tudo pela primeira vez na vida. Começava enfim um jogo de espera e expectativas. Quais seriam os efeitos dos hormônios em meu corpo? Tornar-me-ia a menina dos meus sonhos?

A cada novo dia que raiava, uma novidade. As semanas aos poucos se acumulavam em meses que vagarosamente se tornavam anos. Enfim, o tempo era meu aliado. O corpo e a mente aos poucos se moldando. Primeiro foram as emoções. Elas despertaram de um torpor de mais duas décadas em uma torrente de lágrimas. Depois vieram os cheiros, não apenas o meu mudou completamente, mas passei a perceber os odores ao meu redor de uma forma completamente diferente. A pele foi ficando mais macia e mais gostosa ao toque. A cintura afinava, o quadril alargava e os seios cresciam. O rosto se tornava mais suave e o cabelo mais cheio. A menina tomava forma no espelho. A disforia cada vez menos presente. O vislumbre de uma perfeita consonância no limite. Passaram-se apenas dois anos e minha vida já mudou completamente. Sorrisos são mais frequentes, assim como as lágrimas. Estou presente. Estou viva. Eu sinto, eu choro, eu danço e canto. Não sei aonde esse caminho irá me levar, apenas que devo segui-lo.

Sign up to discover human stories that deepen your understanding of the world.

Free

Distraction-free reading. No ads.

Organize your knowledge with lists and highlights.

Tell your story. Find your audience.

Membership

Read member-only stories

Support writers you read most

Earn money for your writing

Listen to audio narrations

Read offline with the Medium app

--

--

Gabrielle Weber
Gabrielle Weber

Written by Gabrielle Weber

Somente uma mulher trans se aventurando pelas famigeradas terras do estrogênio, enquanto tenta fazer ciência e educar. Artes marcias, café, música e RPG.

No responses yet

Write a response