As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Octogésima Terceira Semana

As mulheres que odiavam os homens
Não existe travesti ou mulher trans que não tenha provado do assédio do homem cis. Junto com a transfobia essa é uma das poucas certezas que temos, quando decidimos transicionar. Eles sabem do abandono emocional institucionalizado a que somos submetidas e, como crápulas que são, aproveitam. Oferecem migalhas de afeto, promessas vazias de amor incondicional e sobretudo aceitação. É tudo o que a travesti abandonada quer ouvir. Ela que foi expulsa de casa e não tem mais família ou amigos. Muitas vezes a inocência de um sonho fugaz fala mais alto e caímos no embuste. Quando não acabamos mortas e esquecidas em uma vala qualquer da periferia, restam as sequelas que fomentam um ódio cada vez mais crescente e proeminente em minha vida. Homem cis é tudo nojento e abusador.
Quando falo isso baseada em minha vivência de travesti que já passou da idade do abate e vive protegida por inúmeros privilégios herdados de uma vida passada, desacreditam. Esbravejam que são apenas cortejos internetescos vazios ou olhares lascivos despropositados. Claro, eu sou mesmo privilegiada, vivo com o amor da minha vida que me apoia e sobretudo me protege de ser vítima desses canalhas. Já tenho tudo e muito mais do que eles podem pensar em oferecer. Porém, é exatamente desse privilégio que nasce o meu dever de alertar minha irmãs. Vocês merecem muito mais. Esses aí só querem usar e abusar de nossos corpos exóticos sem compromisso e sem gastar um vintem. Nesse caso, nada melhor do que expor a realidade nua e crua que eles tanto se esforçam para esconder em fóruns obscuros onde discutem a forma mais fácil de nos comer de graça.
Nessa semana circulou abertamente uma mensagem advinda de um desses antros de perversidade. O autor, obviamente anônimo, bradava ter a receita do sucesso para conseguir pegar traveco na faixa. Bastava, de acordo com ele, mostrar o mínimo de afeto e interesse, levando a travesti para jantar em um restaurante qualquer. Uma tarefa difícil e arriscada, por isso quanto mais remoto o lugar melhor. Afinal quem quer ser visto acompanhado por uma? Vai que duvidam de sua masculinidade, né? Depois disso era correr para o abraço e comer até enjoar. A carência afetiva se encarrega de conferir a esse desalmado uma aura de príncipe encantado. E quando cansasse, era só vir com aquele bem conhecido papo de não conseguir ter um relacionamento com uma travesti. O que a sociedade pensaria? Simples assim. Não passamos de um pedaço de carne exótico e facilmente descartável.
É fácil querer invalidar essa verdade. Ninguém gosta de se deparar com tamanha monstruosidade maculando a própria essência. É mais confortável negá-la sob a bravata de nem todo homem cis é assim. Isso é se eximir da culpa. Ela é também sua, mesmo se não compartilha do ato, mas se cala perante ele ou finge que não é sua responsabilidade se opor àqueles que o perpetuam. A nossa sociedade premia o homem agressivo, o conquistador, aquele que silencia as mulheres. É uma tênue linha que separa esse comportamento da bestialidade descrita acima. Cruzá-la não requer muito. Os abusadores se reconhecem e se protegem. Você quer mesmo passar pano para seus comparsas de crime deslegitimizando a vítima? Será que você é mesmo tão diferente desses canalhas ao ponto de se colocar no alto de um pedestal de civilidade?
Quando expomos esses tópicos sensíveis, estamos fazendo um convite à reflexão. Entrar na defensiva e fingir que não é com você é se colocar no mesmo lugar dos abusadores. Uma atitude pusilânime que silencia a vitima ignorando a importância de sua fala. Não queremos que vocês homens nos ensinem sobre nossas dores, apenas que as ouçam e ponderem sobre seu comportamento atroz. Vocês que não as vivenciam de nada sabem. Contudo, é aparentemente inerente à sua criação querer ter sempre razão, pois apenas a palavra de um homem tem valor. E não interessa o que precisam fazer para atingir essa falsa plenitude. Tudo vale, seja deslegitimizar com argumentos vazios suportados apenas por uma voz mais forte, seja acusar a vítima de ser responsável pelo próprio destino. E depois de tudo isso, vocês ainda têm a insolência de se perguntar por que as mulheres os odeiam.