As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Septuagésima Nona Semana

Gabrielle Weber
5 min readMay 9, 2020

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Confisco

Eles sabiam. Não tinha como ter sido diferente. Quanto mais eu navego pelas minhas parcas e nebulosas memórias de uma já tão longínqua infância, mais certeza tenho de que de alguma forma eles perceberam que eu era diferente. E inconscientemente ou não, agiram. Talvez sob o disfarce das melhores intenções, podaram minhas asas antes que pudesse sequer perceber que as tinha. Claro, nenhum pai quer que sua cria sofra, ainda mais quando acreditam se tratar de um preconceito que julgam ser capazes de evitar. Vamos reforçar os esteriótipos masculinos da maneira mais tóxica possível e, quem sabe, assim esse menino cria jeito.

Muitos fragmentos estão perdidos e os que restam, distorcidos e desordenados. Não sei se efeito de dissociação, trauma ou pura faxina mnemônica rotineira. Recordo-me, contudo, que desde muito pequena adorava colocar uma camiseta com a gola ao redor da testa e fingir que tinha um cabelão. Por algum motivo só costumava fazer isso quando ninguém estava olhando. Talvez, lá no fundo, sabia que esse não era o comportamento que esperavam de mim. Talvez tenha sido duramente repreendida em algum momento anterior. Assim como fora ao caminhar pela casa com os sapatos de salto da minha mãe. Esses não são para você.

De alguma forma os recados foram dados e recebidos. As pequenas fascinações: cabelos longos, sapatos de salto e o magnífico estojo vermelho de maquiagem de minha mãe estavam proibidas. Restava o gozo contido ao vê-la se maquiando e se arrumando para sair. A mensagem tinha sido tão clara que quando percebi minha nova paixão: os brincos, sabia que eles estavam fora do meu alcance. Não adiantava pedir para furarem minhas orelhas. O melhor que receberia seria um seco não, que com sorte não viria acompanhado de algum sermão sexista. Restou-me acompanhar minha vó em sua ida à farmácia para furar novamente as orelhas com meu desejo reprimido.

Os olhos vigilantes eram constantes. Quando não os da mãe, os da vó faziam o serviço. Era difícil, se não impossível, esgueirar-me para liberdade e experimentar. Talvez por isso nunca tenha brincado às escondidas com as roupas e maquiagens da mãe. Acho que o mais ousado que fiz foi, já adolescente, usar uns brincos falsos quando ninguém estava em casa. Meu irmão e eu os ganhamos de algum amigo comum como lembrança de alguma viagem que fizera para o nordeste. De pronto, recordo, eles foram confiscados pelos meus pais. Não eram coisa de menino. Contudo, descobri onde os esconderam e sempre que podia os usava para ornar minhas orelhas, quando não o umbigo. Tremenda foi a tristeza, quando, de muito uso, quebraram. Não me lembro de que fim dei aos famigerados. Só sei que se meus pais notaram seu sumiço, nunca nada comentaram.

Infelizmente, a repressão não se restringiu ao vestuário. Os gestos, trejeitos, choros e brinquedos também foram podados. Bastava meu pai estar em casa, para ralharem que eu oscilava demais a voz ou que eu desmunhecava demais. Chorar então nem pensar. Menino não chora. Fizeram questão de deixar isso bem claro sempre que podiam. De fato, expressar sentimentos não era um hábito bem visto em casa. Ninguém o fazia abertamente. Não à toa, transformei-me em um robô movido por frustrações e raiva.

Não duvido que as brincadeiras também fossem cuidadosamente observadas. Sempre fui mais de contar histórias com minhes bonequinhes do que de brincar de carrinho ou jogar bola. Talvez, porque a imaginação fosse a minha única forma de escapar da prisão sem paredes que minha infância se tornara. As personagens femininas eram raras. Sempre era difícil convencer minha mãe a comprar tais bonequinhas. Para piorar, minha vó tinha uma Barbie que usava como molde para fazer roupinhas de boneca que vendia na vizinhança. Sonhava em poder brincar livremente com ela. Sonhos que eram momentaneamente realizados quando ela a esquecia em cima da máquina de costura, enquanto se preocupava com o almoço.

Talvez a ilusão que até há pouco tinha de que minha infância fora boa se deva àlguns poucos momentos em que consegui escapar dessa inquisição de gênero. Eram raros, mas quando se vive com fome, aprende-se a saborear muito mais a bonança quando ela vem por menor que seja. Bastávamos ir para Petrópolis que os antigos brinquedos da minha mãe ficavam à minha disposição. Claro, os olhares julgadores estavam lá, mas eram nesses parcos momentos que podia brincar de boneca e de casinha. Não seria um comentário jocoso do meu pai que me impediria de aproveitar essa liberdade. Não sabia quando e se a teria novamente.

Esses momentos só se tornaram mais frequentes quando conheci uma menina que se tornaria quase como uma irmã para mim. Viramos unha e carne. Melhores amigas. Com ela pude viver um pouco do que minha infância poderia ter sido. Brincamos muito de boneca, de casinha e de lego. Claro, havia algumas limitações no que fazíamos: nada de roupas e maquiagens. Já que para ela, eu não passava de um menino legal e fofo. Mas para quem até então não tinha quase nada, era um verdadeiro paraíso. Talvez apenas permitido, porque dava indícios de que eu não seria gay ou talvez porque meus pais nunca souberam exatamente o teor de nossas brincadeiras. Éramos duas meninas brincando. Pena que essa amizade não sobreviveu à adolescência. Ela desenvolveu sentimentos mais profundos do que eu poderia corresponder e começou a surtar, quando percebeu que eu me interessava por outras meninas. Óbvio que na minha ingenuidade, ela soube disso por mim. Afinal, para mim ela era como uma irmã e confidenciávamos tudo.

Quiça tenha sido essa tênue, porém crescente, demonstração da minha atração por mulheres no final da adolescência, que tenha dado aos meus pais a impressão de que foram bem sucedidos ao reprimir minhas tendências homossexuais. Não foram poucas as indiretas. Era costumeiro perguntarem por onde andavam as namoradinhas. Atitude que ficou ainda mais comum e invasiva quando meu irmão, três anos mais novo, começou a namorar. Também não faltavam os comentários de que minha cabacisse seria resolvida com uma simples visita ao lupanário local. Felizmente, nunca passaram de ameaças vazias e pude, pelo menos, descobrir minha sexualidade em paz. Lembro da genuína cara de espanto que fizeram, quando, lá pelos meus 20 anos, falei que estava namorando a mocinha que eventualmente se tornaria minha mulher.

O trabalho deles parecia ter sido feito. Não interessava a que custo, tinham me endireitado. Podiam enfim descansar. Só não esperavam que catorze anos depois eu me assumiria travesti. Seu maior pesadelo. Eis o choque. Não ao não saber, mas ao acreditar que tinham resolvido o problema, quando no máximo o que fizeram fora confiscar minha infância e adolescência. Não me interessa suas intenções. Apenas os fatos. O tempo não volta. Por mais que eu esteja aproveitando a minha verdadeira adolescência aos trinta, não é a mesma coisa.

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Gabrielle Weber
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Written by Gabrielle Weber

Somente uma mulher trans se aventurando pelas famigeradas terras do estrogênio, enquanto tenta fazer ciência e educar. Artes marcias, café, música e RPG.

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