As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Septuagésima Quarta Semana
A Opressão do Espelho
A relação da humanidade com o espelho não tem nada de trivial. Um simples, porém sagaz objeto. Não reflete apenas nossa imagem física mas revela nossas mais profundas angústias existenciais. Um fetiche, talvez, para entender nosso fugaz subconsciente. Dizem ser capaz de aumentar nossas imperfeições até que apenas as enxerguemos. Em detrimento de tudo o que há de belo em nossos seres. Claro, a pressão para se encaixar no estrito padrão de beleza pesa. Tem que ser branca. Tem que ser magra. Tem que ser alta. Tem que ter cabelos claros. Tem que ter olhos azuis. Tudo o que foge a esse padrão é execrado. Mais um dos inúmeros denominadores comuns das pessoas com deficiência, gordas, racializadas e trans. Nossos corpos, ensinam-nos desde cedo, são feios e devem ser escondidos. Aprendemos a nos odiar antes mesmo de termos a chance de aprendermos a nos amar.
De certa forma tive uma infância privilegiada. Menino branco de olhos azuis e cabelos claros, sofri apenas por ser mirrado. Baixinho e magrinho: toda uma fragilidade incompatível com a virilidade que esperavam de mim. Escárnio. Sempre o último a ser escolhido na educação física. Não me lembro quando foi que percebi que meu corpo não era o que deveria ser. Recordo-me apenas dos inúmeros e implícitos nãos. Menino não pode ter cabelo longo. Menino não pode furar as orelhas. Menino não pode usar maquiagem. Só fui entender o porquê na adolescência. À época, já ciente de minha transgeneridade que a todo custo escondia, vi meu corpo se transformar à revelia. Os pelos cresciam, a voz engrossava, a cara embrutecia. As espinhas se multiplicavam. O que era másculo demais para mim ainda estava aquém do que a sociedade esperava.
Minha relação com o espelho terminou antes mesmo de começar. Eu me escondia. Seja por baixo de roupas extremamente largas, sempre alguns números maiores. Seja por trás de uma máscara barbada. Meu corpo, minha vergonha. Aquilo não era eu. Apenas meu amor pelas artes marciais o manteve de certa forma bem cuidado. O resto era desleixo puro. As cicatrizes das espinhas que o digam. Mas isso é história para outro texto. Mesmo o direito recém conquistado de deixar o cabelo crescer não reduziu o asco.
Foram quase duas décadas de desprezo. Sem reconhecer meu corpo como meu. Sem me enxergar por baixo de toda aquela fantasia. Desprender-me desse invólucro, que, como poeira, foi se acumulando ao longo do tempo, não seria possível sem primeiro aceitar que aquilo era eu. Que aquilo merecia cuidado e carinho. Que aquilo poderia ser belo e admirado. Tomar posse de meu corpo não foi fácil. Não foi rápido. Mas foi necessário para pavimentar minha jornada para a transição.
Foi num ato de rebeldia que dei o primeiro passo. Mais um daqueles sonhos de adolescente negligenciados. Fiz minha primeira tatuagem. Um Mjölnir envolto pela Jörmungandr com Huginn e Munnin em cada lado. Todo um novo cuidado. Enfim havia algo bonito para apreciar. E como dizem, tatuagem é um vício. Não demorou muito para começar fechar a minha coxa direita com um Cthulhu. Dessa vez, o maior choque não veio com o resultado em si, mas sim com a preparação. Tive que depilar minha perna. Primeira vez em décadas que a via sem pelos. Ela era bonita. Ela era feminina. Toda uma nova vergonha se apossou de mim. Deveria mesmo sentir isso? Não sabia como processar essa sensação. Sabia apenas que a queria toda depilada. Sempre. Precisava ver meu corpo sem pelos, mas e a coragem para isso?
Talvez o ato derradeiro para despertar toda uma feminilidade dormente foi dado num impulso de carnaval. Coloquei um piercing no umbigo. Novamente, outro sonho de adolescente reprimido. Se, no caso das tatuagens, temia pela reação da família, com esse piercing meu medo eram as repercussões internas. Sabia muito bem o que ele significava para mim. Era a rachadura que faltava para ruir com a minha fachada masculina. Minha barrigada ganhou todo um novo contorno. Ainda mais, quando, sob o pretexto de ajudar a cicatrização, arranquei todos os pelos. Meu corpo enfim ganhava contorno no espelho. Primeiro o braço, depois a perna e agora a barriga. O que viria em seguida? A bunda, em uma calça justa que a namorada me incentivara a comprar. Não tinha mais volta. A fachada ruíra.
Não demorou muito. Três meses depois saí do armário para a esposa. Primeira coisa que fiz foi arrancar a barba e junto com elas foram todos os outros pelos sobre o meu corpo. Estava livre. Podia finalmente experimentar roupas e curtir um corpo que ganhava meus contornos. A hormonização, ainda que lenta, fez com que começasse a me apaixonar por mim mesma. Ver a transformação adiabática refletida no espelho. Registrar meu progresso em fotos. Eu era quem me tornava. Não sabia aonde chegaria, mas gostava do que via. Queria mostrar para o mundo. Isso porque os peitos e a bunda ainda eram incipientes. Era apenas a mudança de paradigma catalisada pelo processo de aceitação falando.
Hoje, depois de mais de ano e meio com o estrogênio esculpindo meu corpo, não me contenho. Passo horas me admirando pelada na frente do espelho. Meus seios, minha bunda, minha cintura. Meu rosto e meu cabelo. Meus olhos e boca cada vez mais expressivos. Fiz as pazes com certas partes. É questão de tempo para mudar o que eu não gosto e, por isso, não preciso mais me esconder de meus olhos. Posso curtir meu corpo em eterna transformação e aproveitar cada etapa dessa jornada. Registrá-la em fotos tornou-se um dos meus maiores passatempos. Primeiro eram apenas de rosto, mas aos poucos o corpo começou a se revelar. No começo vestido para realçar as parcas curvas, mas não demorou muito para ele se revelar desnudo. Curvas agora realçadas pelas cores e sombras. Provocações para a namorada, revelações para mim.