As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Septuagésima Sétima Semana
Medos e Desejos
Medo e desejo são duas forças predominantemente antagônicas que regem nossas vidas. O primeiro nos acua em nossa zona de conforto. Protegendo-nos, enquanto nos priva, de novas experiências. Já o segundo fomenta a mudança. Impulsionando-nos na direção que julga correta. O prazer. A satisfação. A realização. Uma dança em sutil equilíbrio. Um a empurrar, o outro a segurar. Um toma lá da cá quase estacionário a promover um crescimento adiabático e saudável de nossa zona de conforto. Exceto quando uma impensada convergência nos acomete e o medo e desejo, de mãos dadas, concordam no sentido de suas forças.
São nesses raros momentos de grande turbulência que apostamos tudo em um sonho. Talvez uma saída desesperada para uma situação funesta. A esperança toda em que uma mudança de paradigma nos salve. Um salto de confiança no vazio, porque já não há mais retorno. Foi nesse ocaso que transicionei. O medo de perder amigos e família, de acabar meus dias sozinha e desfigurada de baixo de uma ponte sobrevivendo de migalhas sobrepujado pelo medo de perder a chance de ser eu mesma. Enfim tomada pelo desejo. Aquele que sempre existiu, mesmo que não me desse conta. Tornar-me-ia mulher, ou morreria tentando.
A primeira reação de muitos ao saberem de nossas transições é frequentemente a de enaltecer a nossa coragem. Mas como falar de coragem quando não se há mais medo? Medo é antítese da transição. É necessário despir-se dele ou usá-lo como fomento. O medo e desejo a nos impulsionar. As distinções antes claras tornam-se borradas. Onde um acaba e o outro começa? Quase como uma coisa só. O desejo de me tornar mulher emaranhado ao medo de morrer infeliz como homem. Estados não-separáveis.
É nessa tempestade de sentimentos que transicionamos. Raramente sabemos exatamente o que estamos fazendo. É um processo solitário. Talvez com a euforia como nosso único guia a nos revelar nossos mais profundos desejos. Desejos que até há pouco estavam ofuscados pelo medo e vergonha. Finalmente podemos experimentar com roupas, com o cabelo, com acessórios. Testamos a voz e trejeitos. Até encontrar aqueles que nos vestem melhor. Os hormônios domados à revelia moldam o corpo e os sentimentos. É uma explosão. Descobrir enfim o impensado prazer de existir.
Nessa confusão de euforias os outros desejos desvanecem. Tudo o que queremos é nos tornar rapidamente a mulher que até então só existia em nossos sonhos. A mulher que enfim está ao nosso alcance. Não vemos a hora da bunda e dos seios crescerem. Queremos mostrar ao mundo quão bonitas realmente somos. Berrar aos quatro ventos: somos mulheres! Somos lindas! Somos gostosas! Somos desejáveis! Sorver dos olhares de desejo sobre nossos corpos. Por mais nojentos que os homens possam ser, ainda é deveras validador nesse processo de autodescoberta. É toda uma urgência de uma vida não vivida. Um estado de catarse.
Mesmo depois de quase dois anos nesta aventura, ainda me pego surpresa por tudo o que está acontecendo. Como se não acreditasse que a menina que hoje vejo no reflexo do espelho tenha realmente se realizado. Sou uma obra inacabada, mas os aspectos da transição já não mais ocupam todos os momentos dos meus dias. Já não sou tão obsessiva com maquiagem ou com deixar algum pelo aparente. Não sou mais tão neurótica em esconder qualquer aspecto remanescente que denuncie minha transgeneridade. Estou mais relaxada na minha pele. Mais confortável em ser eu mesma. Não que não deseje que meus seios sejam maiores, que meus pelos e minhas entradas desapareçam ou que eu tenha mais desenvoltura ao dançar. Ainda há muito o que fazer para me tornar a mulher que posso e quero ser. Mas por ora posso começar a dar vazão a outros desejos.