As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Septuagésima Sexta Semana

Gabrielle Weber
3 min readApr 18, 2020

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Pertencimento

Ter boas referências e exemplos enquanto crescermos é algo essencial para um desenvolvimento saudável e repleto de sonhos. Precisamos muitas vezes primeiro nos enxergarmos em outrem para só então percebemos que também existimos e que somos capazes de alçar qualquer voo. Afinal, somos macacos. Macaco vê. Macaco imita. É assim que aprendemos. Mas, e quando não nos vemos representadas na mídia? A que podemos aspirar? E quando não nos vemos nem representadas em nossos círculos mais próximos? Como podemos nos reconhecer enquanto pessoas? Párias de nós mesmas. Isoladas e irreconhecíveis, crescemos sem rumo e sem perspectiva. Sem ter em quem se espelhar, sem ter com quem confidenciar.

Essa é a triste infância da criança trans. Pelo menos foi assim a minha. Sem entender por muito tempo o que eu era, vivia perdida em minhas dissonâncias. Minhas vontades proibidas. Não precisava nem pedir, já sabia instintivamente que o não viria. Aquilo: batom, brincos, cabelos longos e vestidos, não era para mim. Sabia ser diferente mesmo sem entender direito. Pior, não tinha nem com quem conversar. A solidão apaziguada apenas por devaneios. Mesmo a descoberta da minha essência travesti no final da infância não simplificou as coisas. De fato, só complicou. O sonho tão próximo e tão distante ao mesmo tempo. O preço a se pagar para ser eu mesma muito alto. Melhor ficar quietinha e torcer para passar.

Mas a gente sabe que não passa. A disforia nos elude em suas idas e vindas. Ficando mais terrível a cada visita. Quem me dera ter com quem conversar. Contudo, à época nem com a psicóloga podia me abrir. Era amiga da minha mãe. Certeza que contaria. Certeza que seria expulsa de casa. Certeza que acabaria na prostituição. O medo de me tornar uma garota de programa era tão grande que afetou até minha relação com a programação. As insólitas formas que opera nosso subconsciente. Quisera eu ter um exemplo de sucesso. Bastava uma travesti que fosse conhecida não por sua beleza fetichizada, mas sim por sua intelectualidade. Quisera eu ter com quem conversar. Alguém que comiserasse com meus sofrimentos. Que tivesse passado pelos mesmos dramas e medos. Que pudesse me ajudar a descobrir o caminho das pedras. Mas só fui conhecer pessoalmente uma pessoa trans depois dos trinta.

Falta representatividade. Não à toa. O preconceito é grande. As agressões constantes. Deslegitimam a nossa identidade. Fetichizam o nosso corpo. Não temos espaços seguros. Somente a parede de cristal da passabilidade a nos proteger. Seria muito injusto criticar quem ao atingi-la passa a se esconder. Falar que é trans é um convite à toda essa violência. Mas é necessário que ocupemos nossos espaços. Só assim normalizaremos a nossa existência. Ser trans é natural. Não há nada de errado conosco. As pessoas cis que tem que mudar. Contudo, nenhuma mudança é de graça. Vamos precisar exigir e brigar por nossos direitos. Nossas vozes precisam ser ouvidas. Nossas histórias precisam ser contadas sem nenhum filtro cis no meio do caminho para apagá-las ou deturpá-las de modo a ficarem mais palatáveis à fragilidade da cisgeneridade.

Desde que saí do armário publicamente, tenho me esforçado para compartilhar a minha narrativa. Aproveito dos privilégios que me restaram. Eles não só aumentam as chances da minha voz ser ouvida, mas me protegem de agressões mais violentas. É importante que saibam, pessoas cis e trans, que existe professora travesti na maior universidade do país. Que travesti pode ser bem sucedida na carreira que desejar. Porque lugar de travesti é onde ela quiser. Travesti também pode ser amada. Não precisa se sujeitar as migalhas oferecidas por homens cis, que no auge de sua vergonha, usam nossos corpos apenas como bonecas infláveis descartáveis.

Não há satisfação maior do que o retorno que tenho tido em minhas mídias sociais. Pessoas cis não só querendo ouvir mais sobre nossas questões mas juntando suas vozes às nossas. Pessoas trans me chamando de inspiração e, mais importante, procurando-me quando precisam de ajuda ou alguma orientação. É tão bom poder ser aquela pessoa que eu precisei mas não tive. Isso sem contar as inúmeras amizades que fiz ao longo desses quase dois anos de aventuras pelas terras do estrogênio. É muito bom ter com quem dividir nossos dramas e dores, compartilhar nossas conquistas e felicidades. Não há nada melhor do que essa sensação de pertencimento e acolhimento.

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Gabrielle Weber
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Written by Gabrielle Weber

Somente uma mulher trans se aventurando pelas famigeradas terras do estrogênio, enquanto tenta fazer ciência e educar. Artes marcias, café, música e RPG.

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