As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Décima Primeira Semana

Gabrielle Weber
3 min readFeb 27, 2021

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Uma Escolha Impossível

Nessas últimas semanas, vi muitas garotas sendo expulsas, ou violentadas a ponto de precisarem fugir de casa apenas por serem trans. Os agressores são sempre os mesmos, aquelas pessoas que deveriam nos apoiar e amar incondicionalmente: nossos pais. Talvez esse aumento seja uma consequência da convivência forçada instituída por essa quarentena. Mais provável, contudo, que seja apenas uma questão de minha percepção estar mais apurada. Afinal, a cada dia que passa, cerco-me de mais e mais pessoas trans.

Nossa sociedade cisnormativa ainda insiste na noção equivocada de que podemos escolher nosso gênero, quando no máximo podemos decidir o que fazer com ele. E mesmo assim não temos muita liberdade. Existe um limite do que podemos aguentar. Não obstante, eles nos forçam a uma escolha ainda mais cruel: entre o ostracismo social e o anulamento completo de nossas essências.

Assumir-se trans, enquanto ainda dependemos de nossos pais, continua sendo um ato de extrema coragem, se não desespero. Arriscamos a rejeição e a violência de quem muitas vezes contraditoriamente afirmou nos amar incondicionalmente. Terapia de conversão, ameaças veladas, cultos religiosos fanáticos, socos e pontapés: tudo em nome de nosso pretenso bem estar. E se nada funcionar, sempre podem nos expulsar, somos uma vergonha para a família de bem. Isso quando não escolhemos pelo bem da nossa integridade fugir desse ambiente mortal. Às vezes, encontramos um santuário, na casa de algum parente ou amigo, para nos abrigar até conseguirmos estruturar nossas vidas. Mas na maioria dos casos, o que resta é a rua, a prostituição e a marginalidade. Uma futura vida brilhante ameaçada pelo preconceito. Por que simplesmente nossos pais não podem nos abraçar?

A outra opção é abnegar. Incorporar o personagem que esperam de nós. Jogar o seu jogo. Sobreviver até que viver seja uma opção. A despersonalização constrói muralhas que não apenas nos protegem da agressão, mas também nos privam do contato social. Afinal, se alguém se aproximar, talvez consiga enxergar com clareza as rachaduras em sua fundação. Impensável, um risco que não podemos correr. Ficamos, pois, sozinhas, trancafiadas em um mundo que não é nosso, morremos um pouco mais a cada dia que passa. Seja pelas mudanças físicas que progressivamente nos afastam de quem de fato somos. Desespero. Seja pela consolidação de uma personalidade que não é nossa. Alienadas de nossa própria existência, apostamos em uma vida que pode nunca se realizar.

Já passei da fase de odiar ter nascido trans. Acho que todas nós em algum momento odiamos a nossa malfadada existência. Contudo, o malfadado não deriva de nossa natureza, porém do que a sociedade nos força a passar. Tudo em nome de dogmas binários oposicionais, calcados numa fé antiquada que, em nome de um pretenso amor, prega apenas o ódio e a destruição. Ora, quem somos nós para desafiar as ultrapassadas fundações dessa visão de mundo hegemônica com nossas insignificantes existências? Quem somos nós para apontar as inconsistências dessa estrutura de poder que privilegia apenas um pequeno e seleto grupo, enquanto a grande maioria é explorada? É esse medo paralisante de perder algo que não se tem, que causa essa reação desproporcional. Somos uma rachadura irreversível no cistema.

Hoje, sinto que desejaria apenas não ter tido que passar por todo o terror de uma adolescência errada. Gostaria de ter podido ser quem eu sou desde muito mais cedo, em vez de ter que incorporar um maldido personagem. Desemaranhar-me dessa pessoa, que eu nunca de fato fui, tem sido uma tarefa árdua. Vazios e incertezas. O que eu emprestei do outro apenas para me miscigenar? O que eu reneguei em nome de não ser descoberta? É um estado de confusão. Não sou mais a folha em branco de outrora. Tenho muitos traumas, uma pletora de desejos frustrados e um pouquinho de experiência. Mas o que se desdobra na minha frente é um novo mundo de infinitas possibilidades. Quem eu sou? Quem eu quero me tornar? A única coisa que sei é que não quero que ninguém mais tenha que passar por todo esse purgatório. Precisamos urgentemente acolher nossas crianças trans.

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Gabrielle Weber
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Written by Gabrielle Weber

Somente uma mulher trans se aventurando pelas famigeradas terras do estrogênio, enquanto tenta fazer ciência e educar. Artes marcias, café, música e RPG.

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