As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Décima Terceira Semana

Gabrielle Weber
3 min readJan 3, 2021

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A Adolescência Perdida

Queria poder começar o ano escrevendo algo positivo, motivacional até. Revisitar algumas das minhas conquistas e aceitações ao longo do último ano. Tinha até começado a rascunhar algumas coisas. Mas não, soaria enfadonhamente falso. O fato é que me sinto péssima. Vazia. Ontem passei a tarde chorando. E tudo porque em minha inocência comecei a ler um livro.

Era para ser apenas uma história de ficção envolvendo uma garota trans enfrentando os percalços da adolescência. Contudo, sua história esbarrou nos meus próprios vazios e me forçou a olhar para alguns dos meus mais profundos desejos que não foram e, por questões de ordenamento temporal, não podem ser realizados. Como minha terapeuta diz, por algum motivo que ainda desconheço, eu tenho o péssimo hábito de ficar obcecada com as faltas. Mesmo quando elas são ínfimas, elas sobrepujam qualquer positividade.

Talvez era exatamente isso o que eu precisava. Para podermos seguir em frente, temos que fazer as pazes com o nosso passado e isso necessariamente envolve olhar para nossos desejos frustrados. Não basta apenas ressignificarmos o que fizemos sob o filtro das limitações impostas pelas nossas condições iniciais e de contorno.

Desde que decidi tomar as rédeas da minha vida e enfrentar a disforia, tem sido uma saga de aceitações sucessivas. A primeira foi fazer as pazes com o fato de ser trans. Claro, teria sido tudo tão mais fácil em diversos aspectos se tivesse simplesmente nascido uma menina cis. Só que não foi assim, não foram esses os atributos que rolaram para a minha ficha. Talvez, tenha sido essa inexorabilidade, que algumes chamam de destino, que tenha me ajudado a aceitar com maior facilidade esse fato. Afinal, não havia nada o que eu pudesse fazer sobre isso. Não estava sob o meu controle.

Por outro lado, a decisão sobre quando transicionar sempre me pareceu estar. Acho que foi essa falsa sensação de controle que tem tornado essa aceitação tão complicada. Quem me acompanha por aqui sabe que venho brigando com isso há mais de ano. E dessa vez a questão não está nas chagas que a testosterona deixou no meu corpo, nem nas limitações que ela impôs na minha verdadeira puberdade. Ela reside tão unicamente nas experiências que me foram negadas por ser erroneamente lida como um menino.

Sabe aquelas coisas que as meninas adolescentes tomam como certas? Tipo fazer compras com a mãe, festas do pijama na casa das amigas, as primeiras desventuras amorosas, foram-me sumariamente negadas. Mal conseguia ir a festas, baladas ou qualquer outra interação social. O peso da máscara era sufocante. O desespero de saber que é diferente e não ter as ferramentas para lidar. Viver na expectativa de uma pílula mágica lhe salvar, mas sem nunca provar a sua existência. A sensação de saber que a sua vida está em um hiato indefinido, enquanto o seu corpo toma o caminho errado.

Tudo o que eu queria, era ter tido uma adolescência normal. E isso não tem volta. Não tem nada que eu possa fazer para me propiciar essas experiências perdidas. E isso dói. Não é sobre ressignificar a minha vida na pele do nome morto. Não é sobre arrependimento. Muito menos sobre ter a possibilidade de tomar outras decisões. É sobre lidar com os vazios do passado. Sobre aceitar que eu não tive essas oportunidades e está tudo bem. Eu posso ser completa e feliz sem elas. Mas para isso eu preciso chorar e enfrentar meus desejos frustrados. Vou terminar de ler esse livro, provavelmente pagando seu peso de lágrimas. Tenho certeza de que isso me ajudará em minha jornada de autodescoberta. Quem sabe até faço uma resenha…

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Written by Gabrielle Weber

Somente uma mulher trans se aventurando pelas famigeradas terras do estrogênio, enquanto tenta fazer ciência e educar. Artes marcias, café, música e RPG.

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