As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Nonagésima Sétima Semana
Sentimentos, emoções e música
Por muito tempo acreditei que era incapaz de sentir qualquer coisa que não fosse tesão, frustração, desespero e ódio. Culpava única e exclusivamente a testosterona que, por muitos anos, envenenou o meu corpo. Não me parecia uma hipótese ruim. Afinal, com o começo da hormonização, meu mundo drasticamente ganhou cores. O estrogênio despertou em mim uma infinidade de novas sensações e sentimentos que antes julgava impossíveis: da felicidade ao amor amor, passando pela tão improvável serenidade. Cada uma delas nos seus mais diversos tons. Era tanta coisa para sentir e experimentar pela primeira vez que parecia me aventurar por terras incógnitas, catalogando novas espécies.
Eis que quase quatro anos se passaram desde o início dessas andanças e não cesso em me maravilhar com as cores desse admirável novo mundo. Contudo, hoje, depois de muita terapia, começo a perceber que as coisas não eram tão simples como imaginava. Minha não-vida prévia não era depleta de sentimentos como julgava. Eles estavam todos lá, apenas a maioria se encontrava tão obscurecida por aqueles poucos que era capaz de identificar, que era como se não fosse capaz de sentí-los. A testosterona teve o seu papel em amplificar aquele quarteto apocalíptico, mas ela não agia sozinha. Talvez, o TEA, que comecei a investigar recentemente, tenha contribuído não trivialmente.
Uma dessas fichas caiu essa semana. Estava extremamente irritada e agitada. Incapaz de me concentrar em nada e dando coice na sombra. Tinha um bolo dentro de mim que não só não entendia, como sequer percebia. Sem pensar, pluguei a guitarra e comecei a tocar a esmo. Os riffs começaram a fluir de imediato: um, dois, cinco e, quando me dei conta, estava com uma nova música nas mãos. Tamanho tinha sido o êxtase que não percebi que a irritação de pouco antes havia completamente desaparecido. Tudo o que eu conseguia pensar era em tocar e transcrever essa faixa. Quando a poeira baixou e ouvi a música despossuída da excitação da descoberta, caiu a ficha. Aquela sensação inominável era a ansiedade.
Não foi a primeira vez em que, através da música, consegui acessar e entender as minhas emoções, entretanto, foi a primeira vez em que pude observar esse processo de maneira minimamente consciente. Definitivamente, na minha cabeça, existe alguma relação de equivalência entre música e sentimento e, aparentemente, é só através dela que o que eu sinto faz algum sentido. Mas, resta a pergunta, qual foi o papel do estrogênio nessa história? Minha hipótese é que ao suprimir a testosterona, o quarteto apocalíptico das sensações deixou de estar em overdrive, enquanto que o estrogênio não apenas amplificou as demais, como colocou fronteiras mais nítidas entre elas. Resultado, o bolo de sensações ficou menos assustador e, aos poucos, tenho conseguido aprender a lidar melhor com os meus sentimentos.