As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Octagésima Semana

Gabrielle Weber
3 min readMay 7, 2022

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A última grande jornada por essas terras

Curioso ter sido em maio que mais um derradeiro passo tenha sido dado na direção de me tornar eu mesma. Esse mesmo mês que há quatro anos tanto marcou a minha vida. De uma tentativa falha de suicídio à libertação de revelar uma verdade que até aquele mês eu lutara arduamente para falsear. Impossível. Algumas verdades são absolutas. Imutáveis. Irresistíveis. Foi um alívio incomensurável, como se eu tivesse segurado o fôlego por mais de duas décadas e, enfim, pudesse voltar a respirar novamente. Maio não marca, pois, apenas o início da minha transição, mas agora, também, o começo de seu fim. Um mês repleto de significados e de renovação.

Mas, como assim fim? Como pode uma transição acabar? De fato, não pode. Ela nunca acaba, porém muda de regime. De certa forma, podemos entendê-la como dividida em duas fases. A primeira é um transiente. Rápida e violenta. Repleta de mudanças físicas e emocionais. A segunda é uma fase estacionária, na qual o comportamento assintótico já foi estabelecido. Nela apenas mudanças infinitesimais são esperadas. Pois bem, acredito estar me aproximando do último salto não diferenciável antes de atingir esse estado estacionário.

Trata-se de uma questão que vem me ocupando recorrentemente nesses últimos dois anos e algo sobre o que tenho pensado incessantemente ao longo desses últimos meses. Talvez, esteja claro sobre o que estou falando. Afinal, já dei diversas dicas sutis sobre esse questionamento, esse incômodo, em vários textos anteriores. Porém, nunca de uma forma definitiva e jamais uma forma explícita. Muito porque, além da dúvida sobre esse ser o meu caminho, eu tinha vergonha e medo. Vergonha de me expor demais. Medo de ser julgada e ter a minha travestilidade negada. Sim, mesmo nós que estudamos gênero e sabemos que certas bijeções são obviamente falsas, somos assoladas por dúvidas cruéis criadas por falsas verdades por muito tempo marteladas. O subconsciente nunca está imune.

A verdade é que por mais que eu tenha lutado para me acostumar à minha configuração genital, ela sempre foi um problema. Um daqueles que julgamos sermos capazes de resolver com um remendo. O famoso jeitinho brasileiro, que nos poupasse de enfrentá-lo de frente, em toda a sua glória. Talvez, bastasse não pensar muito e tentar levar a vida como se ele não estivesse ali. Para piorar quase parecia funcionar, já que minha disforia genital nunca foi das mais intensas. Salvo, um ou outro episódio mais violento. Aquendar sempre foi inconveniente, dolorido às vezes, mas será que se tratava de um incômodo suficiente para justificar uma cirurgia de tamanho porte? Por outro lado, a beleza de um corpo feminino com peito e pau sempre me fascinou. Mas, por que nunca conseguia encontrar tal beleza em mim. Nua de frente para o espelho, meus olhos inconscientemente sempre evitavam aquela região. Ela evocava uma sensação de incompletude. Faltava, realmente algo!

De novo, entrava na espiral destrutiva para tentar falsear o infalseável. A verdade é que, em meu mais profundo âmago, eu desejo ter uma vagina. Demorei muito para aceitar isso e, um pouco mais, para fazer algo a respeito. Mas fiz. No final de abril, marquei a consulta que ocorreu nesta semana. Talvez, tenha sido esse o motivo do hiato em meus textos. Não que não tivesse o que escrever, só não estava pronta ainda para falar sobre o que mais ocupava os meus pensamentos. Um híbrido de ansiedade e incerteza me dominava. Será que é isso mesmo o que eu quero? A consulta, felizmente, dissipou essas dúvidas. É isso, sim.

Definitivamente, não será fácil. É uma cirurgia grande e, por melhor que seja o médico e sua equipe, envolve seus riscos. Assim como tudo na vida é uma grande aposta e, por isso, não foi uma decisão fácil. Após a consulta, senti como se todo o cansaço desses dois anos de consideração intermitente tivesse se apoderado de mim. Apaguei com um sorriso no rosto. Um sorriso ainda mais vibrante e esperançoso, que tem me acompanhado desde então. Aquela felicidade boba de quem aos poucos vai se encontrando em seu caminho. Agora, é apenas uma questão de (pouco) tempo para passar pela modificação corporal mais extrema que já concebi. Talvez, o último grande passo da minha transição.

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Gabrielle Weber
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Written by Gabrielle Weber

Somente uma mulher trans se aventurando pelas famigeradas terras do estrogênio, enquanto tenta fazer ciência e educar. Artes marcias, café, música e RPG.

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