As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Quadragésima Quinta Semana
Passabillidade Compulsória
A passabilidade talvez seja o santo graal da comunidade trans. Pudera, a ela não apenas está, de certa forma, associado um padrão de beleza, mas, principalmente, ela traz toda uma segurança ao transitar por espaços públicos. Tanto o bem estar ao se olhar no espelho, como a liberdade de poder estar em público sem medo da violência que tão frequentemente nos acomete são objetivos nobres de serem alcançados. Contudo, não sei se posso dizer o mesmo do amálgama que é a passabilidade. Os motivos são diversos.
Para começar, a passabilidade, na maioria das vezes coloca como objetivo uma estética cisgênera, branca, de magreza extrema, moldada por uma mídia machista e misógina baseada quase que unicamente na preferência sexual dos homens. Nada muito diferente dos padrões inalcançáveis impostos pelos médicos da década de 1960 como condições para uma mulher trans transicionar. Apenas aquelas capazes de excitá-los sexualmente ganhavam esse direito. De uma certa forma, a passabilidade ressignifica a transexual de verdade. Conquanto buscamos e impomos indiscriminadamente a passabilidade como um ideal trans, não adianta falarmos em interseccionalidade. Quantos corpos ela exclui? Quão representativa de nossa comunidade é uma mulher trans passável?
Passabilidade é também domesticação. É se sujeitar a um padrão para ser aceita. É abrir mão de parte de quem somos pelo privilégio condicional cisgênero. Digo condicional, porque basta um observador um pouco mais arguto para perceber que não somos cis. Não interessa quão cedo transicionamos, quão cavalares são as doses em nossa hormonização e quantas cirurgias fizermos. Não somos e nunca seremos cis. Sempre será possível encontrar algum detalhe que denuncie a nossa transgeneridade. Passabilidade absoluta e irrestrita é inatingível. É uma utopia.
Similarmente, não devemos julgar a passabilidade de alguém, colocando-a como exemplo a ser atingido, por fotos publicadas na internet. Ninguém que tenha questões com a sua aparência publicaria uma foto em que se julga feia, não é? Então, por que, nesse paradigma de passabilidade compulsória, alguma transfeminina exibiria uma foto em que não estivesse minimamente passável? Não é raro as pessoas que só me conhecem virtualmente se chocarem com o fato de eu ser, muito mais frequentemente do que gostaria, tratada no masculino. Os inúmeros: mas como isso pode acontecer, se você é tão passável? Infelizmente, essa é uma realidade restrita ao mundo virtual e apenas com uma escolha muito adequada de ângulo e iluminação. Sem contar que não posso abrir a boca. Afinal, não há muito o que se pode fazer para mitigar as mais de duas décadas de estragos promovidos pela testosterona.
Muitas vezes essa quebra da ilusão de cisgeneridade que outras pessoas têm de mim é puramente circunstancial. Em muitos lugares que vou, sou tratada quase que exclusivamente no feminino, se estou só. Contudo, se estiver acompanhada pela minha esposa, a chance de me tratarem no masculino aumenta exponencialmente. Nesse caso, não há muito o que eu possa fazer. Trata-se de um reflexo da homofobia em nossa sociedade, que só enxerga como um casal verdadeiro aquele formado por um homem e uma mulher. Daí quando me contrastam com a minha esposa, não há ilusão de cisgeneridade que se sustente. As minhas características mais masculinas se tornam óbvias e as pessoas imediatamente supõem que eu seja um homem.
Dói muito ser tratada no masculino. Talvez, mais do que deveria. Gostaria de nunca mais passar por isso. Só que sei ser impossível. Não sem uma mudança completa em nossa sociedade, que, infelizmente, demorará muito mais tempo do que me resta de vida para se consumar. Entretanto, isso não significa que não devamos lutar por essa desconstrução e pela valorização dos corpos trans fora da limitante ótica cisgênera. Temos que encontrar e promover nossas próprias métricas.