As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Quadragésima Semana
Uma Metaventura
Talvez vocês não saibam, mas as crônicas de minhas aventuras por essas ermas terras começaram em outra plataforma: o Reddit. Logo que escolhi viver a minha verdade, foi nessa rede social que encontrei acolhimento. Primeiramente, em fóruns gringos, onde muitas meninas faziam relatos frequentes sobre suas jornadas. Ler sobre as mudanças físicas, psicológicas e sociais que me aguardavam trouxe uma rara calma naquele momento tão turbulento. Isso, sem contar a esperança de dias melhores em que poderia enfim me reconhecer no espelho.
Felizmente, não demorou muito para encontrar uma nascente comunidade de brasileires. Estava em casa. Discutíamos as mesmas dificuldades e os mesmos desafios. Tudo era tão mais próximo e familiar. Só faltavam os relatos sobre transição hormonal. A maioria das meninas ou estava já mais avançada, com alguns anos de hormonização, ou sequer haviam começado. Acho que fui a primeira desse grupo de novatas a começar. Quase uma desbravadora. E de um papo com a minha orientadora trans, surgiu a ideia de fazer os diários, tão comuns nos fóruns gringos, porém inexistentes em português.
Não havia um grande compromisso. Era para ser a minha válvula de escape das confusões e das ansiedades das primeiras semanas de hormonização. Colocar as coisas no papel sempre me trouxe calma e perspectiva. Com sorte, ainda ajudaria outras meninas que estavam prestes a trilhar esse caminho. Só vi vantagens. Duraria quanto precisasse durar. De fato, jamais imaginei que continuaria a escrever por tanto tempo.
Na minha ingenuidade, achava que as coisas se acalmariam na marca de um ano. As mudanças diminuiriam, os desafios, em sua maioria, teriam sido superados. Não poderia ter estado mais enganada. Os desafios apenas mudaram. A necessidade de escrever só aumentava. Percebi que meus textos se tornaram uma extensão da minha terapia. As provocações que ela fazia durante as sessões e, que, no momento, deixavam-me sem chão, encontravam algumas respostas em minha escrita após alguns dias sendo processadas em background.
Meus questionamentos, minhas opiniões e desabafos sobre as situações que vivia, os preconceitos que sofria e as posições da própria comunidade trans também encontravam seu lugar no meu semanário. Era o meu momento de reflexão semanal. Sozinha, de frente a uma folha branca tentando colocar algum sentindo em meus sentimentos, medos e angústias, aprendi muito sobre mim. Amadureci muito nesses quase três anos. A pessoa que me tornei muito se deve aos textos que escrevi e as conversas que eles fomentaram. Infelizmente, a plataforma que utilizo atualmente para publicá-los não permite o mesmo tipo de proximidade que o Reddit. Sinto muita falta dessa interação, porém não tinha como continuar por lá. O ambiente se tornou deveras hostil, completamente diferente daquele que me acolhera.
Talvez tivesse sido a desculpa perfeita para deixar de escrever. Mas, eu conseguiria sobreviver sem essa válvula de escape? Acho que, por enquanto, não. O máximo que aconteceu nesses últimos meses foi diminuir um pouco a frequência. Estava começando a me sentir obrigada a escrever semanalmente e tudo que se torna uma obrigação perde um pouco da graça e muito do propósito. Honestamente, não sei até quando continuarei a escrever por aqui. Enquanto fizer sentido, enquanto eu tiver o que falar, enquanto tiver pessoas interessadas em ler minhas estórias e opiniões. Só o futuro dirá.