As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Quadragésima Semana
Calmaria
Disforia. Uma palavra que representa uma parte mais significativa da minha vida do que gostaria de admitir. Desde que me entendo por gente, ela me acompanha à espreita. Às vezes, demasiadamente presente, outras aparentemente dormente. Não faz muito tempo, ela bateu forte. Muito forte. Machucou bastante. Levou-me a lugares que há muito não visitava. Cantos dos mais tenebrosos da minha mente. Ideias ruins quase me tomaram. Sorte não estar só. Sorte estar fazendo um bom acompanhamento psicológico.
Descrevi aqui um pouco do que passei. Talvez com mais eufemismos e alegorias do que devia. Mas era o quanto me sentia confortável em compartilhar, em olhar para a bagunça que estava dentro de mim, em admitir para mim mesma. Assolada por uma aterradora sensação de fracasso. Havia falhado no plano de fazer as pazes com o meu corpo. Sentia vergonha, dor e medo da decisão que precisava tomar. Uma questão que, por mais que julgasse resolvida, ainda estava demasiadamente aberta. Ainda sangrava muito. A urgência em decidir também não ajudava.
Consegui, ao menos, perceber no meio dessa tempestade que precisava parar de tentar me enganar. De fingir que tudo estava bem com o meu corpo. De esperar que as coisas magicamente se resolvessem. Não, já deveria muito bem saber: não existem milagres. Deveria tomar o controle da situação, ou seja, escolher um único caminho a seguir. Quem me acompanha por aqui, sabe da minha dificuldade extrema em tomar decisões. Procrastino, tento caminhar, mesmo que deslocalizadamente, por todas as trajetórias possíveis ao mesmo tempo. Em suma, evito ao máximo. O resultado, é invariavelmente sempre o mesmo, sou forçada a escolher no pior momento: o do desespero. E a gente sabe muito bem que nem sempre as melhores decisões são tomadas nessas condições.
Por isso, não tomei nenhuma decisão final, só me abri para uma possibilidade que nunca havia me dado honestamente a chance de considerar. E se eu reconfigurasse a minha genitália? Foi como se um peso enorme tivesse sido instantaneamente removido das minhas costas. Chorei. Mais um daqueles alumbramentos que guiou a minha transição. Talvez fosse esse o caminho: a forma de finalmente encontrar a paz sob a minha pele. Contudo, trata-se de uma cirurgia complicada e com implicações para o resto da vida. Se não devia decidir no desespero, também não deveria escolher na euforia. Prometi para mim mesma que esperaria a disforia e a euforia se dissiparem para analisar calmamente a situação.
Enfim, cerca de três semanas depois, estou eu aqui escrevendo-lhes tudo isso, porque parece que a poeira enfim baixou. Se não sinto a disforia genita avassaladora que me dominou, tampouco sinto aquela euforia gostosa de quem percebe que encontrou a solução para seus problemas. Estou tranquila. Consigo me enxergar sem estar amarrada. Estou serena. Consigo contemplar o meu reflexo completo no espelho. Não sei se gosto, mas, ao menos, não me é abjeto. Parece até que nunca passei pela crise disfórica das semanas anteriores. E sim, essa é uma sensação recorrente. Não é a primeira vez que, na calmaria após uma crise disfórica, tenho a falsa sensação de que aquela foi a última, de que ela enfim adormeceu. Talvez, esse seja o melhor momento para explorar os meus desejos. Temo, apenas, no processo despertá-la novamente.