As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Quinquagésima Semana
Breves Reflexões de um transversário
Três anos, cento e cinquenta e cinco semanas e mais de cento e trinta textos. Quem diria que escreveria por tanto tempo? Honestamente, já esperava ter parado. Já esperava não ter mais tanto o que contar. Foram muitas reflexões nesse período, vários choros e mais um tanto de reclamações. Quem me conhece sabe muito bem quão reclamona e impaciente eu sou. Ou talvez, você só me conheça através destes textos e isso não transpareça tanto. Breves relatos de alguns dos momentos mais marcantes desses últimos anos, mas que revelam muito sobre mim. Às vezes, até mais do que devia. Já ouvi que deveria me resguardar mais e compartilhar menos. Quiçá, já devesse até ter parado de escrever. De fato, diminuí a contragosto a frequência nesses últimos meses. O tempo andava escasso e a vida deveras interessante.
Essas datas comemorativas são engraçadas. Repletas de uma nostalgia quase desconfortável de tão piegas que podem ser. Nem parece que há três anos dava o passo fundamental para me tornar quem eu sempre deveria ter sido, mas que a natureza tentou arduamente impedir. Mal sabia ela que desistir não fazia parte do meu vocabulário. Chegaria onde sempre deveria ter estado ou morreria tentando. E quase foi dessa segunda forma. Porém, sem mais memórias ruins, há muito de bom para relembrar, como a ternura dela colando o primeiro adesivo nas minhas costas, que estará para sempre comigo. Indelével. Entrávamos juntas nesta jornada para um redescobrimento mútuo. Definitivamente, não sou a única protagonista desta história. Ao longo do caminho, encontrei algumas pessoas maravilhosas, que, eventualmente, tornaram-se grandes amigas, e outras nem tanto, para não dizer desprezíveis. Nem tudo foram rosas. Mas quem disse que seria?
Ao mesmo tempo que parece que foi ontem, também sinto como se tivessem passado algumas décadas. Por bem, ou por mal, já mal me lembro do terror que era estar naquela prisão sem muros. Não me recordo mais como era ser aquela pessoa desprezível. Ele está morto e enterrado. Relegado às brumas do passado e esquecido para todo o sempre. É quase como se ele nunca tivesse existido, e toda a minha vida se resumisse apenas a esses três últimos anos. As mais de três décadas anteriores relegadas a um mero borrão desvanecente.
Cada dia que passa me reserva uma nova descoberta. Ontem mesmo, estava reparando como a minha forma de sentar mudou. Não se trata apenas da liberdade de poder me postar como eu bem queira, minhas coxas, meu quadril e minha bunda também mudaram. Agora, essas coxas são minhas e não as de um estranho aí. Que sensação surreal. Falando ainda sobre pertencimento corporal, como é maravilhoso ter seios! Não vou nem tentar encontrar palavras para descrever, pois inexiste alguma que sequer capture de uma forma marginal esse maravilhamento. Sentir eles balançando enquanto me movo. Esbarrar aleatoriamente com meus braços neles. Até mesmo as dores de crescimento, que persistem até hoje, o melhor exemplo de um descontentamento contente. Ou seria, um contentamento descontente? Sei lá, só sei que ao mesmo tempo que incomoda é um incômodo bom. Reconfortante. E pensar que há dois anos estava completamente decepcionada com o seu desenvolvimento, considerando seriamente que minha única esperança seria entrar na faca. Ainda bem que tive um pouco mais de paciência. Eles não são tão grandes quanto gostaria, mas certamente muito mais bonitos do que qualquer prótese de silicone.
Esse conforto na própria pele, essa sensação de pertencimento e de reconhecimento são tão gostosos, que por vezes me sinto a mulher mais bonita e gostosa do mundo. Todas as disforias, inquietações e inseguranças cessam e eu só existo. É um silêncio, uma quietude tão ímpar que até parece que o mundo parou para me admirar. Inebriada em mim mesma. Pena que esses momentos são demasiadamente fugazes. As incertezas da vida retornam, junto com os medos e os desejos ainda não realizados. Sei que ainda o espelho ainda não me reflete adequadamente, mas se aproxima, num limite delicado, que talvez só exista no infinito temporal. Mas, como dizia um sábio professor, antes tarde do que mais tarde. Sigo na minha caminhada de alumbramentos adolescentes, cada vez mais senhora de mim. Enfim, sou capaz de me enxergar envelhecendo feliz ao lado da minha esposa. Algo que era completamente impensável antes, já que não existia futuro para aquela forma decadente.