As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Semana
Aprendendo a dançar
Cem semanas desde que comecei a terapia hormonal. Cem semanas que venho abrindo o meu coração e relatando os percalços, as alegrias, as dores e as inúmeras descobertas dessa nova fase da minha vida. Infelizmente, não são cem textos, em parte culpa da quarentena e do excesso do tempo passado na frente da tela. Mesmo assim, não esperava que esse semanário durasse tanto. Que tivesse tanto a contar. Honestamente, achei que perderia a vontade ou a necessidade de escrever ao final do primeiro ano. Estava errada. Muito errada. Sinto que ainda tenho muito a desabafar.
Essa quarentena, ao nos privar do contato social, fez com que tivesse que conviver mais de perto com meus próprios demônios. Medos, inseguranças e velhos hábitos tóxicos que ingenuamente julgava exorcizados pela transição. Afinal, era toda uma nova vida, certamente me tornaria gradativamente uma nova pessoa. Ledo engano. Eles apenas ficaram mascarados pelas frivolidades do cotidiano e todas as novas experiências que me inebriavam. Mas estavam lá, só esperando uma oportunidade para mostrar as garras afiadas nesse entretempo. E nem mesmo o excesso de trabalho que o ensino à distância emergencial proporcionou foi capaz de impedir que eles ressurgissem.
Filha da culpa, fui criada para assumir responsabilidades. Forjada pelo medo de falhar, nada que fizesse era suficientemente bom. Falhas eram tudo o que eu conseguia ver. Nenhum sucesso era digno de comemoração. Afinal, só fizera a minha obrigação. Nada de excepcional. Estava sempre na incessante espera da aprovação que nunca vinha. O olhar do outro era a minha métrica. Uma régua tóxica e desproporcional. Estava sempre contra mim. Era sempre eu que tinha que me adequar. Uma pressão interna para atingir uma perfeição impossível. Não havia espaço para erros e imprevistos. Bastava um leve desvio do planejado para me desesperar e explodir. Eram gritos, grosserias e esperneios, quando não um murro na parede. Não tinha aprendido a lidar com frustração. Ora, se não me era permitido falhar, para que perder tempo aprendendo uma habilidade que nunca deveria ser utilizada?
Contudo, não só de sucessos é feita a vida. E não é porque alguém consegue fazer algo, que necessariamente somos também capazes. Com a sobrecarga de trabalho e a diminuição das válvulas de escape, as expectativas só aumentavam e as falhas só se tornaram mais constantes e mais sofridas. Não podia perder uma manhã fazendo supermercado. Não podia despender de uma tarde para resolver um problema doméstico. Meu trabalho era mais importante. Ele me definia. Voltara a ser o monstro de outrora?
Não, porque nunca havia deixado de ser. Ele só estava dormente dentro de mim, enquanto me maravilhava com a minha nova vida. Precisava urgentemente renormalizar minhas cobranças e expectativas. Elas estavam me matando. Precisava aprender a olhar para as coisas boas. Se não de birra em birra acabaria ou tendo um treco ou afastando definitivamente minha esposa. Não vou mentir. Não foi fácil olhar para dentro e encarar de frente essas coisas. Elas estavam há muito tempo negligenciadas. Medo de me assumir falha e incapaz. Mas era imperativo que o fizesse.
Doeu muito. Foi um processo traumático movido a choros inconsoláveis, porém libertador. Abrir mão do meu código de paladina fervorosa não fez com que perdesse minha identidade, mas me libertou das amarras que restavam. Estava enfim livre para experimentar, errar e aprender com meus erros. Abriu meus horizontes para novas experiências. Não perdia mais tempo fazendo supermercado, mas sim o investia comprando coisas gostosas para deixar o isolamento mais confortável. Fiz as pazes com a cozinha e estou aprendendo a cozinhar sem me desesperar com qualquer ínfima coisa dando errado.
Estou leve. Uma leveza que refletiu na minha forma de andar, falar e gesticular. Acho que nunca fui tão eu. As máculas deixadas pela testosterona não mais me incomodam tanto. Desvaneceram ou estão sendo ressignificadas. Estou aprendendo a gostar mais e mais das minhas curvas. Outro dia, acordei com uma sensação inédita. Fui tomada pela certeza de que era uma grande gostosa. Deixei de brigar com as ondas da minha existência para me juntar a elas. E ao deixar as coisas fluírem, tenho dançado mais com a vida. Ouso dizer que nunca estive tão feliz.
Não faço promessas sobre até quando escreverei e com que frequência sairão os textos. Se tem uma coisa que a quarentena tem me ensinado é a ser flexível com minhas expectativas e metas. Tudo a seu tempo. Enquanto fizer sentido, continuarei por aqui.