As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Septuagésima Oitava Semana
Fêmeas humanas, espaços segregados e a segunda lei da termodinâmica
Talvez, um dos questionamentos propostos em minhas palestras ou falas que mais choca a audiêncis é sobre o uso, por pessoas trans, dos banheiros e demais espaços segregados por gênero. Sempre causa perplexidade, estranhamento e alguns sorrisos (muito) desconfortáveis. Mas, como assim? Se tem uma coisa que qualquer pessoa cis toma como uma verdade universal é a existência de um ambiente seguro onde possa fazer tranquilamente as suas necessidades fisiológicas na hora e no lugar que desejar. Parece-lhes inconcebível que tal direito possa ser negado de tão básico que é.
Infelizmente, esse direito, que deveria ser fundamental, nem sempre é garantido para as pessoas trans. Não são nem um pouco raros os relatos de mulheres trans e travestis sendo sumariamente expulsas de banheiros femininos. Não bastasse a humilhação, essa agressão muitas vezes ganha caráter físico. Banheiros e demais espaços segregados por gênero são ambientes de disputa, onde a construção e a demarcação do que é ser homem e mulher acontece incessantemente. Não à toa, há uma severa vigilância sobre quem pode ter acesso a esses espaços e, consequentemente, pertencer a tal categoria.
Nessa semana, retornei ao Instituto de Física da USP para palestrar, no Encontro de Outono da Sociedade Brasileira de Física, sobre as diversas problemáticas enfrentadas pelas pessoas LGBTQIA+ no mundo acadêmico. Já perdi as contas de quantas vezes dei essa palestra, mas essa foi especial. Além de toda a ansiedade associada aos possíveis encontros com pessoas que conheciam o finado, mas não me conheceram, estava entrando num território historicamente dominado pelas terfs.
Essas aí que se dizem feministas e, paradoxalmente, autodenominam-se fêmeas humanas não apenas negam a mulheridade transfeminina, como se empenham arduamente em nos excluir e agredir. As cabines do banheiro feminino na biblioteca não me deixam mentir. Suas paredes estão marcadas pelo conflito que se deflagra diariamente. Diversas frases transfóbicas, a maioria, felizmente, riscada ou rasurada e ainda mais frases de apoio, de acolhimento e de resistência denunciam o estado da disputa. Nós, mulheres trans e travestis, chegamos para ficar. Podem continuar se reduzindo à sua anatomia e aos gametas fixos que acreditam produzir, não são eles que lhes fazem mulheres.
Se é esse o entendimento que têm de sua mulheridade, não me surpreende o medo que vocês sentem com a nossa presença. O desespero suscitado pelas dúvidas levantadas pela nossa mera existência deve ser paralisante. Contudo, em vez de estudarem e ponderarem sobre o seu lugar no mundo, vocês preferem nos atacar, na vã tentativa de aplacar o desconforto e o vazio que sentem consigo mesmas.
Contudo, adianto-lhes, vocês já perderam essa disputa, pois, assim como, ao abrirmos um frasco de perfume em um banheiro, não conseguimos conter o seu aroma, que se espalha irreversivelmente até dominar todo o ambiente, nós pessoas trans ocuparemos todos os espaços. A explicação é simples. Vem de uma das teorias mais velhas e mais testadas de toda a física: a termodinâmica, cuja segunda lei afirma:
“Todo processo que ocorre na natureza transcorre de maneira que a entropia total do sistema sempre aumenta. No limite, ou seja, para processos reversíveis, a entropia total permanece constante.”
Em outras palavras, a segunda lei afirma que a entropia de sistemas isolados não pode diminuir espontaneamente, uma vez que sempre atingem um estado de equilíbrio termodinâmico no qual a entropia é máxima para uma dada energia interna. Consequentemente, processos naturais são irreversíveis. Logo, a queda do cistema é inevitável. Trata-se apenas de uma questão de tempo. Tomada pela serenidade despertada por essa certeza, fiz o meu xixi tranquilamente e fui proferir a minha palestra.