As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Septuagésima Primeira Semana
Ecos do Passado
O isolamento social que a pandemia trouxe ajudou ainda mais a me afastar de pessoas que a vida já cuidara de colocar em trajetórias diferentes. Seja por interesses pessoais ou profissionais distintos. Seja porque elas se mostraram preconceituosas. Seja porque elas não demonstraram nenhum interesse em me conhecer de verdade. Talvez tenham preferido ficar com a imagem do finado. É inegável que ele era uma pessoa muito mais palatável em diversos aspectos. Aspectos que jamais serei. De fato, nem quero. Estou feliz em incomodar pelos motivos certos: ser verdadeiramente eu e não me preocupar mais com me ajustar aos antiquados paradigmas alheios. Eles que lutem.
No entanto, nada muda o fato de que vivemos no mesmo planeta e, por isso, a chance de nos esbarrarmos ao acaso nunca é nula. Em particular, ela aumenta exponencialmente, se eu estiver no mesmo habitat que alguma dessas pessoas. E foi algo que aconteceu recentemente, quando precisei ir a uma reunião de trabalho no Instituto de Física da USP. Para quem não sabe, foi lá que fiz parte da minha graduação, o doutorado e um pós-doutorado. Um lugar que foi minha casa por pelo menos uma década. Fiz grandes amigues lá, incluindo a minha esposa. Contudo, desde que me mudei para Lorena e, mais especificamente depois que transicionei, foi um lugar que deixei de frequentar. Um tanto por acasos da vida, outro tanto por realmente não querer encontrar com algumas pessoas.
Certamente, as pessoas que me conheceram na época que frequentava o Instituto de Física sabem que transicionei. Afinal, não existe criatura mais competente na arte milenar da fofoca do que físiques. Isso sem contar que o coletivo LGBTQIA+ de lá leva o meu nome. Assim, tanto minha súbita aparição por essas terras não seria estranha, como, dificilmente, eu passaria despercebida. Não nego, fiquei bastante ansiosa, e um tanto preocupada, com o tipo de interações que poderia ter por lá. Pessoas fofoqueiras são inerentemente curiosas. E, não podemos fingir que, no Brasil, ainda nos tratam como verdadeiras aberrações, ao ponto de se sentirem à vontade para fazerem as mais escabrosas indagações sobre a nossa vida e intimidade.
Felizmente, essas preocupações foram em vão, pelo menos dessa vez. Já que, novamente graças à pandemia, o instituto estava completamente vazio, à exceção de algumes funcionáries, que dificilmente se lembrariam de mim, e das pessoas que participaram da reunião. Mas, a sensação de ser uma estranha numa terra conhecida estava lá. Tudo tão familiar e ao mesmo tempo tão diferente. Não digo isso pelas parcas mudanças estruturais e reformas pelas quais os prédios passaram. Eu que havia mudado completamente. A pessoa que viveu uma parcela significativa de sua vida naquele lugar já não existe há uns bons anos. Era, pois, a primeira vez que eu entrava naquele lugar que carregava os ecos de uma vida passada junto com seus fantasmas.