As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Septuagésima Quarta Semana
O Peso Diferencial dos Olhares
Uma coisa que eu aprendi logo no começo da minha transição foi a tirar fotos nos momentos em que eu estivesse me sentindo bem com o meu corpo. Registrar para a posteridade que essa felicidade era possível foi essencial para sobreviver a inúmeras crises disfóricas. Afinal, nos momentos de desespero, bastava abrir a galeria do celular para me deparar com a verdade. E, nada melhor do que a verdade para quebrar o transe e começar a desacreditar em uma ilusão. Não é uma receita infalível contra a disforia, mas é muito efetiva. Recomendo.
Contudo, algo que eu nunca tinha parado para pensar é o quanto essas fotos revelam sobre como eu me enxergo. Sobre como essa é a minha visão sobre quem eu sou. Tal percepção me avassalou nessa semana que passou ao comparar duas fotos. A primeira tirada por uma amiga e a segunda, um pouco mais tarde, por mim. Em ambas as fotos estava eu de elastomérica e cabelo muito bem preso. Infelizmente, não dá para usar esse tipo de máscara com o cabelo solto. A consequência é que minha nem tão pequena testa fica muito mais evidente. E como ela estava enorme na foto tirada pela minha amiga! Parecia ocupar toda a imagem. Tão grande que passei o resto do dia extremamente desconfortável. O começo de uma crise disfórica.
Como diria Preciado, a indústria farmacopornográfica vende um padrão de beleza feminina. Parte dele envolve uma testa pequena emoldurada por uma linha capilar arredondada. Por outro lado, os anos de envenenamento por testosterona retraíram a minha linha capilar e a deixaram com um formato que lembra a letra M. Características que essa mesma indústria associa à beleza masculina. Trata-se, pois, de uma receita infalível para ser lida e tratada no masculino. A disforia não dá um dia de folga. Claro, existe uma solução para esse problema, afinal, o capital precisa girar e cada vez mais esse ideal de beleza normatizar. É um dos procedimentos cirúrgicos mais empregados por transfemininas dentre aqueles denominados cirurgias de feminização facial. Não vou entrar aqui nos detalhes sórdidos de como o procedimento é feito, mas também não vou negar que passei algumas horas pesquisando sobre e efetivamente considerando me submeter a ele. É essa a força da indústria farmacopornográfica.
Contudo, era essa a percepção que tinha sobre mim? Ou era o olhar do outro falando mais forte? Ter uma testa grande era algo que realmente me incomodava? Ou era apenas eu tentando me adequar ao cistema? Esses três anos de terapia serviram pelo menos para me ensinar a questionar a origem dessas vontades e sensações de inadequação. Ter uma testa grande não era o problema, mas sim o que essa percepção no olhar do outro significava. Era mais uma coisa a denunciar a minha origem. Entretanto, por que eu deveria ter vergonha de quem eu sou? Claro, poderia ser um gatilho para transfobias e disforias decorrentes. Porém, adequar a minha testa ao padrão de beleza feminino vigente não resolveria esse problema. Na melhor das hipóteses, seria uma solução temporária. Não demoraria muito para encontrarem outra cicatriz deixada pela testosterona em meu corpo. É um ciclo sem fim, cuja única saída é não jogar.