As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Septuagésima Segunda Semana
Medo, asco e sobrevivência
O meu maior medo antes de começar a terapia hormonal não foi a possibilidade de ter resultados pífios, nem mesmo os efeitos colaterais da medicação me assustavam, mas sim de a minha sexualidade mudar. Não eram raros os relatos, nos fóruns que frequentava à época, de meninas que passaram a se sentir romântica e sexualmente atraídas por homens, depois de começarem com o estrogênio. Ficava apavorada só de pensar. Um nojo descomunal se apossava de mim. Claro, tudo não passava de uma coletânea de evidências anedóticas que as próprias meninas não atribuíam unicamente ao estrogênio, porém a uma conjunção de fatores envolvendo, em particular, a liberdade de se expressarem. De fato, elas mesmas levantavam a possibilidade de esses desejos estarem apenas soterrados em um misto de homofobia e transfobia, e afloraram com a transição. Mesmo assim, o medo estava lá.
Vocês não imaginam o alívio que senti, quando percebi que minha atração continuava única e exclusivamente voltada a mulheres. Por sinal, passei por umas situações bem engraçadas com algumas amigas me mostrando fotos de homens, que elas julgavam atraentes, mas que não despertavam nada em mim que não nojo, desprezo, asco. A gente ria, porém eu não deixava de me preocupar com essa reação gutural que se apossava de mim. Não era algo saudável. Levei para a terapia e, num primeiro momento, a conclusão era de ser uma reação remanescente da minha antiga relação com o meu corpo. Aquele mesmo que, durante a adolescência errada, mudou sem o meu consentimento e foi desfigurado sob a ação da testosterona. Precisava trabalhar isso.
A própria terapia hormonal ajudou muito nesse processo de aceitação do meu corpo ao atenuar e, em alguns casos, até mesmo reverter as cicatrizes deixadas pelo envenenamento por testosterona. Demorou, mas, eventualmente, deixei de ver aquela sombra execrável toda vez que me olhava no espelho. A terrível masculinidade não estava mais à espreita. Enfim, livre desse fantasma do meu passado. Era quase como se ele nunca tivesse existido. Talvez, tivesse deixado também de sentir nojo por homens. Ledo engano, disso eu não tinha me livrado. Era uma sensação bem menos nauseante do que a de outrora, mas ainda estava lá. Por que? O que seria então a fonte de tamanho e persistente asco.
A ficha caiu essa semana: trauma. Ter sido forçada a conviver na intimidade de homens, dividindo banheiros e vestiários, e, por isso, vislumbrar a parte mais execrável de seus âmagos. Parece que, nesses ambientes, eles se despem também de todo o pudor. É uma competição atroz pelo posto de alfa. Para ganhar não basta exibir o maior falo, precisa ser capaz de subjugar os outros com os troféus de suas conquistas. Mulher é objeto: você usa, exibe e descarta. Estupros são narrados como vitórias. E se você não tem uma história para compartilhar, melhor calar e consentir para não virar alvo das piadinhas, chacotas e agressões. É um ambiente deveras abjeto: não bastasse toda essa misoginia, há também, homofobia e transfobia descaradas. Viados e travecos não são sequer gente e precisam ser eliminados de forma exemplar. Lembro vividamente de como exaltaram os moleques que espancaram um homem gay com lâmpadas fluorescentes. Tive que me calar para não me tornar a próxima vítima.
Acho que nem uma vida de terapia vai me livrar desse nojo, desse desgosto que sinto. O que foi visto não pode ser jamais desvisto. Que sirva como um aviso! Tamanha reação gutural não é nada além de autoproteção. É preciso manter distância desses seres abjetos, que se fantasiam de bons moços e se escondem atrás da famigerada ladainha: “mas nem todo homem”. Sim, se você, homem cis-hétero que frequentou esses ambientes se calou, você é tão culpado quanto os que bradaram seus crimes na impunidade do grupo. Estou, enfim, mais tranquila comigo. Não há nada que eu possa, ou melhor, deva fazer, exceto manter distância e me proteger. Siga sempre o seu nariz.