As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Septuagésima Sexta Semana

Gabrielle Weber
3 min readApr 2, 2022

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O Retorno

Foram mais dois anos de casulo. Outro exílio autoimposto em nome da sobrevivência. Pelo menos dessa vez, eu não estava sozinha. Tinha com quem compartilhar todos os medos e inseguranças. Assim como todas as pequenas descobertas e vitórias. Foi um período intenso. Muito intenso. Privada de quase todo o contato humano. Teria enlouquecido, se não fosse a companhia e o colo da esposa. Refugiei-me no mundo virtual. O twitter virou uma espécie de segunda casa, ou, como gostava de pensar: o recreio. Conheci muitas pessoas legais por lá, algumas que considero minhas melhores amigas. Talvez, não tivéssemos desenvolvido essa intimidade e conexão, se não fosse a pandemia. O isolamento físico fomentou o contato virtual.

Por mais tóxicas que as redes possam ser, encontrei toda uma segurança que julgava perdida no mundo real. Claro, há o assédio dos travequeiros; há o ódio das terfs, bem como toda uma transfobia descarada que se alimenta da impunidade no mundo virtual. No entanto, não temo ser agredida e ter minha integridade física ameaçada. Minha guarda baixou. Toda a neura da passabilidade sublimou. Não precisava performar uma feminilidade forçada. Não precisava prestar tanta atenção na voz. Não precisava me sujeitar ao desconforto de ficar aquendada o dia inteiro. Enfim, podia ser eu mesma sem me preocupar com o peso do olhar do outro. Sempre o outro. Foi libertador. Aprendi a olhar para o meu corpo de outra forma. Nem sempre tão gostosa, mas era o meu olhar.

A iminência do retorno às atividades presenciais desencadeou uma ansiedade que há muito não sentia. Sempre fui uma pessoa deveras introvertida e com muita ansiedade social. Algo que trabalhei bastante nos dois anos anteriores à pandemia. Tinha me soltado muito. Estava começando a ficar realmente à vontade na companhia dos outros. De fato, estava começando a gostar do contato. O isolamento social foi um tremendo balde de água fria. Senti como se tivesse voltado à estaca zero. O medo do retorno era grande. Como seria lidar com as pessoas e, sobretudo com o peso e o julgamento de seus olhares? Como essas pessoas me leriam e, consequentemente, tratar-me-iam? Minha mulheridade seria questionada? Teria que voltar a negociar incessantemente a minha existência?

Passadas duas semanas neste teste de fogo que é a vida real, posso dizer que meus medos eram desproporcionalmente grandes. De uma certa forma, esses dois anos pareceram apenas uma noite muito longa. Parecia que estávamos retomando exatamente de onde paramos naquele começo de março de 2020, como se nada tivesse acontecido. Talvez, a única coisa realmente estranha tenha sido conhecer es alunes para quem lecionei apenas virtualmente. Foi muito desconfortável me deparar com pessoas que pareciam me conhecer muito bem, mas que eu não fazia a menor ideia de quem eram. Não apenas os nomes me eram desconhecidos, mas os rostos e as vozes também. De certa forma, eu era uma estranha numa terra de estranhos.

Todo esse contato social me drenou completamente. Além do óbvio exercício físico que é dar aulas de máscara. Chego aos finais de semana completamente exausta. Um cansaço físico, mental e social. Às vezes, tudo o que quero é ficar sozinha num quarto escuro ouvindo uma música e me desconectando. Recuperando-me da sobrecarga sensorial que tem sido os meus dias. Esse ano vai ser desafiador: reencontrar o equilíbrio entre vida social, pessoal e profissional depois de dois anos em que tudo acontecia junto e ao mesmo tempo. Reaprender a colocar barreiras e a destruir muros. Aventurar-me por um admirável mundo velho. Reencontrar-me. Desconstruir-me e me montar novamente. Estou feliz em poder voltar a sentir o vento no rosto e o calor humano.

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Gabrielle Weber
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Written by Gabrielle Weber

Somente uma mulher trans se aventurando pelas famigeradas terras do estrogênio, enquanto tenta fazer ciência e educar. Artes marcias, café, música e RPG.

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