As Aventuras de Gabi nas Terras do Estrogênio — Centésima Sexta Semana
Algoz
É uma sensação estranha em sua constância. Acompanha-me aonde quer que eu vá. Um desespero sutil. Sinto que se virar a cabeça muito rápido ainda conseguirei vê-lo pelo canto do meu olho. À espreita. Uma sombra em sua incansável perseguição. Esperava que esses quase dois anos e meio fossem o suficiente para ele desistir. Perceber que seu lugar não é aqui. Aceitar o seu destino de ser relegado ao esquecimento. Apagado da história. Como se nunca tivesse existido. Mas não, como eu, o demônio é persistente.
Não surpreende. Afinal, nascemos no mesmo dia. Gêmeos a partilhar de um único corpo. A dividir todas as experiências até o fatídico dia em que dei um basta. Estava farta da tirania de suas regras herméticas, de seu machismo vulgar, de sua condescendência apática. Aquela pessoa nunca me representou, era apenas um reflexo vazio do que a sociedade esperava dele. Uma sociedade torpe. Sua sujeira a macular meu corpo. Envenenar-me. Corromper-me. Tornar-me tudo o que havia de mais execrável. Até que me calasse indefinidamente. Mas a voz persistiu e, sob o augúrio da constelação das duas faces, a vida e suas ironias, derrubou o déspota.
Morto em nome, mas não enterrado. Fadado a vagar por uma terra cada vez mais brilhante. E como a luz machuca seus olhos acostumados com as trevas. Arisco. Dominado por um ódio destruidor. Violento. Sedento por voltar ao controle. Qualquer coisa e já acho que é mais uma de suas artimanhas para retomar o poder. Desesperado. Até quando vou viver assim: refém de meus medos e sua onipresença?
Talvez seja esse o motivo da cólera que me domina toda vez que alguém profere o seu nome. Não consigo me controlar. Mesmo que a pessoa tenha cometido o erro sem intenção de me machucar, como a moça ao ler o meu cadastro ainda em seu nome, a vontade é de esmurrar. É algo que surpassa o entendimento racional. É uma ofensa às fundações da minha alma. É me comparar com a podridão de um passado que não foi meu.
Não quero mais viver sob o pavor de sua iminente volta. Acuada e assolada pelos mais diversos pesadelos que remetem à sua presença. A barba a macular meu rosto. Os cabelos a caírem. A testa a crescer indefinidamente. Os pelos a sujar a minha pele, cuja maciez aos poucos se desvanece. Os peitos, a bunda e todas as curvas a se perderem na esterilidade de seu mundo sem cores. Os cheiros ofuscados pelo seu fedor acre. A mente em pânico com a inquietação ascendente de outrora. A calma e a plenitude ameaçadas.
Foi tão difícil chegar até aqui. Não posso sucumbir ao seu veneno. Preciso desesperadamente encontrar alguma forma de exorcizá-lo. Gostaria que fosse tão simples quanto extirpar suas entranhas. Sei, contudo, que não será o suficiente. As marcas são muito mais profundas do que apenas órgãos vestigiais. Os traumas deixados por sua existência talvez só possam ser superados mantendo uma parte sua em mim. Não existem atalhos.